Vida de cão

No horóscopo chinês o meu signo é o cão. Não sei se é coincidência, mas intelectualmente ando me aproximando muito da corrente filosófica conhecida como cinismo. Como se sabe, a palavra cínico vem do grego kunikós que significa “referente a cachorro”.

Mas, como não sou muito crente em astrologia de qualquer hemisfério, acho que tudo isso é mera conversa fiada, porque, na verdade, eu tenho pouca simpatia por cães. Aliás, vou ser franco, sem meias palavras: eu detesto cachorro. Nunca entendi essa mania moderna de atribuir sentimentos humanos aos animais. Tenho cá pra mim que as pessoas andam tão insensíveis umas em relação às outras, com tantas dificuldades de trocas afetivas, que trataram de metamorfosear os bichos pra que eles correspondam passivamente às suas expectativas. E como o Homem é amestrado para enxergar apenas aquilo que quer ver, qualquer peraltice de um ente de estimação é vista como uma demonstração de afeto ao dono.

Exemplo típico: uma criatura abre a porta de casa e é atacada pelo “filho” adotivo, que ficou o dia trancado entre quatro paredes. Pois o recém-chegado vai entender essa euforia do prisioneiro como uma manifestação de felicidade pelo reencontro. Naturalmente, ele não vai considerar o fato de que a vítima de sua adoração passou várias horas enjaulado num apartamento minúsculo, e que está apenas querendo correr pra rua, que é seu lugar natural, e se ver livre daquela prisão insuportável, porque apartamentos não foram feitos para cachorro.  Não, nada disso. Esse entusiasta do antropomorfismo, carente de um afago, que já teve desilusões com outros iguais a ele, não se põe a filosofar sobre a natureza dos cães. Ele apenas precisa acreditar que é amado e isso basta.

Não é necessário dizer que não estou aqui a defender maus tratos, agressões, abandonos. Maldades contras outras espécies, com exceção das mordidas e das sarnas, só o homo sapiens é capaz de praticar. Eu mesmo, apesar da declarada ojeriza, nunca maltratei nenhuma cria da natureza. É bem verdade que perco a paciência com algumas liberdades caninas, como aquela mania muito cultivada pelos vira-latas de vir fungar em volta da gente cada vez que se bota o pé numa via pública.

Mas a irritação maior é sempre com os bípedes. Aos domingos, quase sempre chego ao fim do dia com os nervos à beira de um ataque por causa dos latidos no apartamento de um vizinho. Creio que o animal, digo, o vizinho, deixa o quadrúpede trancafiado, sem ao menos uma esperança de liberdade. Pois, afinal de contas, para muitos apaixonados, prender alguém sem chances de movimento é uma grande prova de afeição.

Outra situação que me deixa babando de raiva é quando vou à feira aqui no meu bairro, aos sábados, e quase sempre acabo enrolado em alguma corda de cachorro, porque uma gentil dama, ao sair pra comprar frutas, decidiu levar o pet a passear. Então, enquanto ela apalpa as laranjas e bergamotas de um vendedor, o animalzinho se esparrama a farejar o chão ao longo da feira, laçando as pernas de quem ousa se intrometer entre ele sua senhora. Isso sem falar na cena mais patética que observo diariamente em qualquer lugar. Dois amantes de cachorros se encontram, os malandrinhos começam a se cheirar mutuamente e os condutores, em vez de aproveitarem a oportunidade para uma conversa entre eles, se param a falar com seus acorrentados, sem ao menos notar a presença um do outro.

Não vejo nada de errado em gostar de cachorro, de gato, de cavalo, de galinha, de avestruz, de formiga e de toda a fauna que coube na arca de Noé.  Mas não acredito muito nesse tipo de amor em que um dos seres precisa andar preso a uma cordinha pra não se mandar embora pra sempre.  É vida que nem cão merece.

2 Comentários

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    nazare.camara@hotmail.com Postado 23 de junho de 2014 01:57

    Corajoso, você! rsrsrs

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    mirianhistor@yahoo.com.br Postado 5 de agosto de 2014 16:41

    Ademir,

    Sua noção de” cotidiano canino” está fundamentada num ambiente urbano específico.
    Descortinar outros espaços irá abrir um leque de conhecimento acerca da vida de cão de cada dia…

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