O golpe dos privilégios

Todo governo espúrio precisa construir um discurso de legitimação. A história é prodigiosa em exemplos desse fenômeno. No Brasil, pode-se mencionar o Regime Militar, que encontrou na retórica anticomunista um aval para todo o tipo de arbitrariedades, por mais que a tal ameaça comunista não passasse de uma alucinação gerada no âmbito da caserna, onde o nível de reflexão intelectual só se comparava ao das beatas da TFP.
O presidente Collor de Mello também precisou recorrer à invenção de um bode expiatório. Como a arenga anticomunista já não mais assustava tanto, a maldição recaiu sobre os detentores de altos salários nos cargos públicos, responsáveis, segundo ele, pelas dificuldades financeiras que o pais enfrentava. Collor contava com a legitimidade das urnas, mas não tinha nenhuma credibilidade fora das camadas da população que o elegeram, pessoas facilmente manipuladas pela desinformação, e ansiosas pela volta de um salvador da pátria. Além disso, mais tarde vieram a público as trapaças feitas por parte da mídia para influenciar os resultados e impedir que o pais fosse governado por um presidente de tendências mais populares. O monstro do comunismo ainda não estava completamente morto. O fato é que o até então mais jovem presidente da história do Brasil, que desfilava ostensivamente, cheio de vigor e energia, se autoproclamou o caçador de marajás. O resultado dessa aventura é do conhecimento de todos.
Agora temos mais um governo ilegítimo e, por conseguinte, mais um bicho-papão, um verdugo da sociedade brasileira. A quadrilha de corruptos que se instalou no poder com o golpe de 2016 nem nisso conseguiu ser original e apelou para o ressentimento popular para atacar supostas regalias de um pequeno grupo de pessoas contempladas, segundo os cleptocratas, com incríveis benesses econômicas. E o alvo do ataque são as remunerações mais elevadas que, segundo a narrativa golpista, significam altos rendimentos, em contraste com a maioria da população que mal consegue lograr um mísero soldo para matar a fome. Uma injustiça, proclamam eles.
Mas, quem são os novos marajás dos atuais impostores? As altas fortunas, que vivem de rendimentos e dividendos isentos de tributos? Os grandes sonegadores, que devem milhões para a Receita Federal? De maneira nenhuma. Com todo o retrocesso patrocinado pela camarilha temerista, seria incoerente que nesse quesito houvesse algo novo, e os grandes vilões da sociedade brasileira, aqueles que só se beneficiam de uma estrutura social anacrônica, continuam sendo os servidores públicos que, na opinião dos usurpadores, usufruem de inaceitáveis vantagens em comparação com os trabalhadores da iniciativa privada. E quais seriam esses proveitos injustos? A mídia nacional, aliada e parceira da fraude, apresenta diariamente inúmeros gráficos e estatísticas para provar a enorme discrepância entre os estipêndios na iniciativa privada e no setor público. E como prova de tão grande desequilíbrio, buscam comparações com os países de primeiro mundo, onde existe quase uma equiparação entre as duas instâncias.
Naturalmente que, devido a tanta responsabilidade e excesso de trabalho, tanto da equipe econômica quanto dos seus súditos na imprensa, os técnicos às vezes se atrapalham e cometem alguns equívocos nas interpretações dos gráficos e das estatísticas. Coisa compreensível para homens que se dedicam com tanta intensidade a resolver problemas de alcance coletivo das finanças públicas. No entanto, seria interessante que, antes de acabarem com as desproporções remuneratórias que corroem as entranhas da nossa pobre sociedade, os novos arautos da justiça social observassem alguns detalhes dignos de nota. Primeiro, nos países civilizados e desenvolvidos, aqueles em que os partidos políticos derrotados esperam as novas eleições para tentarem de novo a conquista do poder, a pequena diferença entre os emolumentos públicos e privados não se dá em consequência de uma desvalorização do serviço público, e sim porque os trabalhadores das empresas privadas recebem um pagamento digno. Se no Brasil essa disparidade é gritante, não é por causa de supostas prerrogativas dos funcionários públicos, e sim porque os trabalhadores da iniciativa privada vivem num regime de quase escravidão, recebendo um ordenado que mal garante a sobrevivência material.
Mesmo caso a questão da estabilidade, tão atacada há muito tempo. Não se trata de um tratamento especial para quem passou num concurso numa empresa do governo. Trata-se apenas de uma compensação por uma dedicação exclusiva, exigida por lei, pois se sabe que, a partir do momento em que assume um cargo no governo, o indivíduo não pode exercer nenhuma atividade paralela, salvo raríssimas exceções, normalmente para cargos do alto escalão.
Então, uma medida que poderia favorecer todo mundo, ricos e pobres, público e privado, seria, em primeiro lugar, um governo legítimo, que tivesse um projeto para o país, e não um plano promocional de vendas das instituições governamentais. Por enquanto, os únicos que desfrutam de concessões especiais em solo brasileiro é a corja de saqueadores que invadiu o governo e expulsou uma presidente honesta e legítima. Essas aves de rapina não fazem outra coisa além de improvisar medidas de última hora para salvarem a própria pele e se safarem das ameaças constantes da justiça. O maior presente que o povo poderia esperar neste momento é ver toda a súcia do Planalto ser escorraçada de Brasília. Ou pelo menos ganhar o privilégio de um alojamento na Papuda.

foto por @bemblogado

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