Conservadorismo sólido

Desconfio muito das desavenças nos relacionamentos afetivos. E mais ainda de quem se propõe a falar sobre elas. E justifico minhas reservas. As pessoas não entram em conflitos por causa de seus afetos, e sim por causa dos desempenhos que são esperados delas numa relação. E qualquer tentativa de análise que ignore essa característica acaba por reduzir o problema, na maioria das vezes, a um ponto de vista moral. Ao iniciar um contato afetivo, especialmente quando se trata de relação homem/mulher, o indivíduo tende a incorporar os valores sociais que regem essa forma de convivência, e se dispõe a corresponder às expectativas que a sociedade cobra dele. O problema é que nem todos conseguem represar seus sentimentos em embalagens fornecidas em série pelas convenções sociais, e o resultado é que os desencontros são inevitáveis.
Abordar esse tema e não levar em conta a origem social de muitas emoções é falar de um problema que de fato não existe. E é isso que faz Zygmunt Bauman no livro Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Devo confessar que tenho certas precauções com autores de muito sucesso, sobretudo esses que falam de relacionamentos, pois a experiência me ensinou que as incursões nessa área são, em geral, superficiais, para agradar o grande público, e que, por isso mesmo, não conseguem ir além das generalizações do senso comum, de caráter não raramente moralista. E os laços afetivos entre os sexos, por acionarem valores morais que dão base à formação da família tradicional, célula base da sociedade ocidental, são os preferidos dos moralistas.
E com Bauman não é diferente. Já nas primeiras linhas, ele se põe a lamentar o fim das “relações indissolúveis e definitivas” entre os “homens e mulheres (…) desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos descartáveis …” Só esse trecho já seria o suficiente para saber do que se trata. A calamidade da vida moderna, segundo o autor, é que as pessoas abandonaram as convenções e passaram a compartilhar vivências apenas orientadas pelos sentimentos.
Mais adiante, a lamentação continua com a falta de seriedade na vida contemporânea. Pois é nesse ponto que começam os problemas no discurso de Bauman. Ele confunde profundidade afetiva com submissão às regras de sociabilidade. Existe aí um referente bem claro que orienta essa concepção: as sociedades de castas, onde os indivíduos nascem e atravessam a vida até a morte na mesma posição, em contato com as mesmas pessoas, desempenhando os mesmos papeis, sem nenhuma chance de mobilidade. Nessas sociedades, onde a comunidade era o referente, o que importava era o ritual que mantinha o indivíduo preso ao seu local de origem e às suas obrigações. Porem, na nossa sociedade, o indivíduo é o referencial, e não a comunidade, e as vivências afetivas são resultado da mobilidade da existência de cada um. Pretender que a manutenção de relacionamentos simultâneos, ou de pouca duração, caracteriza superficialidade é confundir afeto com obrigação social. E mais ainda, negar a importância do desejo como um dos fatores que impulsionam na busca por contatos.
O que determina a duração de um comprometimento é apenas uma afinidade que nasce e deve continuar espontaneamente, com toda a liberdade de movimentação, inclusive para o afastamento. Qualquer relação que se mantenha por algo que não seja uma disposição interior e reciproca, não é afetiva, e não passa de ação compulsórias. Tudo menos amor.
Aliás, é na concepção de amor que o famoso sociólogo se perde mais uma vez. A comparação de amor e morte é uma herança do Romantismo, que entende o amor como uma entidade, um ser superior que escolhe um ser humano a quem atacar com sua flecha envenenada e, a partir desse momento, a pobre vítima está infalivelmente afetada pelas agruras dos sentimentos. Está implícito aí uma concepção dos sentimentos com uma dimensão mórbida, uma doença incurável, na qual a vítima sucumbirá, sem chance de cura. Nada mais romântico e anacrônico.
Também é possível vislumbrar na liquidez das ideias de Bauman a noção de “relacionamento sério” como sendo aquilo em que a pessoa investe seus afetos para uma relação definitiva, a relação amorosa como o ápice da realização do espírito humano. Mas, alerta o autor, isso não é para qualquer um, é apenas para aqueles espíritos fortes, dotados de “humildade e coragem”. O amor é uma dimensão aonde se chega com o exercício de algumas qualidades Parece que a maior fonte de pesquisa do autor a esse aspecto da questão são as colunas de conselhos sentimentais, aquelas apoiadas no psicologismo do senso comum, sem nenhuma fundamentação que lembre a seriedade cientifica.
É sintomático que Baumam ignore a “História do Amor no Ocidente”, de Denis Rougemont. Pois nessa obra, constatamos que aquilo que o Ocidente chama de AMOR não é nada mais do que um discurso inventado e articulado historicamente, a partir da Idade Média. O ser humano tem uma necessidade existencial de se elevar um pouco acima das mesquinharias da vida cotidiana, acreditar que, pelo menos em alguns momentos, está vivendo uma experiência sublime, de grandeza espiritual. Daí a noção de amor surgiu exatamente para esse fim: fazer o homem sonhar que é possível atingir as esferas celestiais aqui na terra. E ainda com a vantagem de ser uma experiência ao alcance de qualquer um, independente de classe social ou posse econômica, uma experiência de valor universal, bem ao gosto da burguesia ascendente, que buscava mais espaço na estrutura fechada do mundo medieval.
Em resumo, o livro Amor Líquido não passa de uma ladainha conservadora de alguém que lamenta não viver mais no passado, onde os papeis sociais eram definidos no nascimento. Mais preocupante ainda é o fato de esse autor ser tão badalado, o que demonstra que o conservadorismo calcado nas generalizações do senso comum é muito sólido.

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