A VISITA DA VELHA SENHORA

Os generais já tinham ido embora mas havia ainda o medo que que voltassem. A gente até cantava uma canção que dizia assim: O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante, fascinada. Nessa época, o único sonho de todo o brasileiro era a volta da normalidade, da democracia. Era tão intenso o nosso sonho que, aos primeiros sinais de chegada de uma visitante tão ilustre, começamos a festejar, e nem percebemos que a velha senhora estava doente, enfraquecida e precisou ser conduzida por uma guarda de honra, da qual nem suspeitamos. Quando nos damos conta de que esses agentes eram, na verdade, vigias, o sonho virou um pesadelo. Como naquelas histórias macabras em que uma aldeia se enfeita toda para receber a visita de uma figura muito importante, e depois tudo vira tensão e terror.

Ela chegou, devagar, oscilante. Ou melhor, os anfitriões a receberam assim, um pouco por falta de prática de convívio, outro pelo temor de ofendê-la ou machucá-la. Mas os receios se dissiparam, ela se instalou na vida de todos e a audácia substituiu o medo, a empatia tomou o lugar da desconfiança, pois descobriu-se que se tratava de uma senhora muito amorosa, compreensiva e tolerante, recebia de braços abertos a todas as pessoas que a procuravam, os que esperavam por ela, os que queriam conhecê-la e até os simples curiosos sem muita convicção. Ela tinha sempre uma palavra carinhosa para recebê-los. Instalou-se um clima de harmonia tão intenso que logo a cidade estava toda em festa, na celebração da diversidade e do gozo da existência.

Mas alguns daqueles convivas que se juntaram aos festejos se mantiveram sentados, meio escondidos num canto, observando com um olhar muito desconfiado aquela apoteose da vida que fluía nos sorrisos, nos abraços. De início, deram para se queixar do barulho, depois começaram a emitir comentários maldosos sobre as maneiras e os comportamentos que achavam inadequados. Sem que ninguém desconfiasse, aproximaram-se daqueles agentes que conduziram a visitante, em colóquios ao pé do ouvido, inaudíveis no meio da algazarra comemorativa. E quando consideraram que as comemorações se estenderiam por tempo superior ao que lhes parecia adequado, se levantaram em protestos. Eles queriam acabar com a nossa folia, sob o argumento de que aquele rebuliço denegria a imagem da comunidade, que até então se tinha por muito séria e respeitosa. Foi aí que nós prestamos maior atenção naqueles indivíduos macambúzios, que não se divertiam, apraziam-se numa abstinência de qualquer bebida que pudesse tirá-los da pose austera. E notamos também que aquele conluio com os supostos guias já vinha de longe, de antes da chegada deles.  A lição que aprendemos, com dor e decepção: a alegria contagiosa, a espontaneidade, a fluidez da existência livre, sem pejos, assusta muito os espíritos presos, aqueles que vivem submetidos aos limites precários das convenções e da moral. E, hoje, esses espectros sonâmbulos tomaram conta da casa e querem suprimir qualquer explosão de divertimento que não esteja de acordo com algumas regras pré-estabelecidas. Pois para esses deserdados da vitalidade essencial, há uma divisão bem clara entre o certo e o errado, o bem e o mal, o bom e o ruim. E a nação que os adeptos dessa ordem planejam é um agrupamento uniformizado, unívoco, defendendo as mesmas ideias e repetindo os mesmos discursos, assim como os fiéis numa igreja, na hora da missa, que balbuciam em coro apenas as réplicas de uma ladainha ritualística. Os espíritos rasos não gostam de nada diferente, seja nas ideias, nas falas, nas maneiras. Seus consortes partilham o ideal de uma população bem-comportada, bem-educada, bem vestida, mas essa noção de bem é apenas a projeção de suas próprias preferências. Eles ignoram a ética e se agarram à moral para planejar uma sociedade supostamente perfeita, que não seria nada mais do que um espelho multiplicado de suas próprias personalidades.

Umas das características mais marcantes dessas mentes atrasadas, fanáticas pelos bons comportamentos, é tachar de radical e deselegante qualquer expressão verbal que coloque em xeque aquela harmonia elegante estabelecida como o jeito correto de viver. Por isso, uma das primeiras atitudes tomadas ao se apossarem da brincadeira foi estabelecer os assuntos que se podia discutir em público. Sob o pretexto de manter a paz e harmonia entre os cidadãos, foi estabelecido que não se falaria mais de alguns assuntos, como política, por exemplo, porque esse é um tema que sempre traz discórdia e provoca tumulto entre os indivíduos. E os novos tempos clamam por uma nova ordem em que todos comunguem das mesmas crenças. O que se tem hoje, sempre que surge um movimento de tensão em que as tendências políticas afloram, é um desses defensores da harmonia saltar com um acervo completo de respostas previamente estabelecidas pela maioria das pessoas de bem, pronto a afastar qualquer possibilidade de conflito. Sentenças consideradas cheias de sabedoria, tais como: “política e religião não se discute”; “respeito sua opinião, gosto que respeitem a minha”, estão sempre na ponta da língua para evitar qualquer dissabor na hora de uma provocação imprevista.

Hoje, aquela senhora que veio nos visitar continua na sala, entronada num lugar de destaque, mas é tudo meio de faz de conta, porque, como ela está meio velhinha e debilitada, ninguém dá muita importância ao que ela diz. Como ela era muito valorizada no passado, finge-se que tudo leva o consentimento dela. E quando algum inoportuno argumenta que esse aval é apenas fictício, um exercício de prestidigitação para enganar a plateia, imediatamente salta um fiscal da ordem para apaziguar os ânimos. O importante é que agora temos uma orientação segura, um jeito correto de viver, baseado em princípios que servem pra todo mundo e não apenas para alguns.

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