A CEGUEIRA DA JUSTIÇA

“Ofereceram a meu pai o emprego de juiz substituto e ele o aceitou sem nenhum escrúpulo. Nada percebia de lei, possuía conhecimentos gerais muito precários. Mas estava aparentado com senhores de engenho, votava na chapa do governo, merecia a confiança do chefe político – e achou-se capaz de julgar.

Naquele tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha à justiça. Necessário absolver amigos, condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria”

O trecho aí acima foi tirado das páginas memoráveis do livro Infância, de Graciliano Ramos. Embora o autor esteja entre os maiores ficcionistas da nossa terra, o relato é autobiográfico, composto pelas memórias da infância, vivida nos últimos anos do século XIX.

Para quem vive hoje sob a égide dos princípios republicanos é muito difícil imaginar como seria a vida naqueles tempos de antanho, em que o notável saber jurídico, um pré-requisito básico nos dias de hoje para exercer a magistratura, podia ser substituído pelos laços de amizade com os mandantes mais próximos. É constrangedor saber que as sentenças podiam ser promulgadas de acordo com a cara da vítima, ou ao gosto do freguês, isso é, a parte que tivesse maior influência ou interesse nos rumos do julgamento.

Uma olhadinha rápida na história oficial daquele final de século mostra que esse não foi um fato isolado, muito menos um fruto enxertado da criatividade do grande escritor alagoano. É possível encontrar registro de que lá nas primeiras sessões do STF – Supremo Tribunal Federal, alguns Ministros não possuíam nem mesmo experiência jurídica, sendo que o requisito que prevaleceu na hora da escolha em substituição a uma necessária formação acadêmica foi simplesmente a amizade pessoal com o presidente da iniciante República. Sem falar que algumas Excelências da Suprema Corte também desempenhavam funções de Ministros de Estado, o que poderia causar algum conflito de interesse na hora de tomar decisões importantes.

Imagine viver em um país onde um cidadão, ao ser levado à frente de um jurado na condição de réu em um processo criminal sofresse uma derrota vexatória pelo simples fato de ser carente de amizades célebres. Nenhuma importância às provas cabais de inocência. Em vez das perquirições de praxe, uma única pergunta: quem é o seu melhor amigo?

Já que começamos este texto com a citação de um escritor, deixemos a fantasia correr solta e imaginemos um político muito popular, capaz de chegar ao poder com larga margem de votos, mas que não contasse com a aprovação dos poderosos. Problema fácil de resolver. Chama um amigo, de preferência um ambicioso sem grandes méritos para galgar altos postos por conta própria, e oferece a ele proventos inimagináveis, além da eterna gratidão do chefe. Esse jurista improvisado seria bem capaz de inventar provas, solapar informações essenciais, ignorar o rito processual, para impedir que os amigos sofressem qualquer ameaça de instabilidade do poder. Deus nos livre de viver em um país assim.

Felizmente no Brasil de hoje, todas as instituições funcionam sob a inspiração dos mais nobres princípios republicanos, cada membro de uma esfera do poder age estritamente orientado pela isenção, imparcialidade, com fundamento nos mais profundos conhecimentos técnicos, teóricos e filosóficos. Nada de agradar este ou aquele setor. Tanto que até o conceito de crime perdeu aquela conotação moral de antigamente, em que um crime era tão somente um crime, e precisava ser punido. Hoje, as faltas estão catalogadas numa estrutura hierárquica, com base em conhecimentos jurídicos muito precisos. Por exemplo, quando o juiz tem muita convicção de que o réu é culpado, mas não conseguiu juntar provas suficientes da referida culpabilidade, não há problema algum em pular alguns princípios básicos de justiça, pois o objetivo é restabelecer a ordem para impulsionar o progresso, como bem proclama o dístico da nossa bandeira. Afinal, a justiça é cega e paira acima de tudo, mas a lei não, e sabe bem como cair em cima de cada um e de todos.

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