Vinho Chileno

Desde que comecei a beber vinho com certa pretensão, por assim dizer, científica, desenvolvi uma indisfarçável aversão a esses sucos-de-uva-com-álcool, produzidos na América do Sul, sobretudo no Chile. E não cabe a mim a pecha de preconceituoso, porque só cheguei a esse ponto depois de muito maltratar o estômago com blends deselegantes típicos da região, onde há sempre algo que é demais: ou o álcool, ou o tanino, ou a acidez. Sem falar na madeira que recende em exagero, e enjoa nos primeiros goles. Mas a minha proposta sempre foi aprofundar o conhecimento no mundo dos vinhos, e a curiosidade é uma estratégia muito eficaz. Por isso, nunca rejeitei ou preferi nada baseado apenas no país de origem. E continuei na esperança de encontrar algum vinho chileno que atendesses às necessidades das minhas papilas gustativas, em fase de aprendizado.

Por sorte, o mundo está cheio de gente bem intencionada, sempre disposta a ajudar os iniciantes, e graças a isso, minhas invectivas eram sempre rebatidas com sugestões de algum rótulo que deixara boa impressão no meu interlocutor. E em várias ocasiões ouvi muitos elogios sobre os tais ícones chilenos. Porem, ao encontra-los em lojas e conferir as etiquetas de preço, vivia a triste sensação de que o problema não estava na qualidade dos vinhos e sim no meu contracheque. Daí, passei a viver o dilema existencial mais cruel dos últimos tempos. Gastar todo o meu mísero salário em vinhos bons, ou passar o resto da vida a engolir xaropes avinagrados. Então lembrei que em Rivera é tudo mais barato, e fiz o que faz a maioria dos pobres deste país, em véspera de feriadão: embarquei numa excursão rumo ao Uruguai. E lá chegando, fui direto aos templos de consumo da classe C brasileira. Após percorrer várias prateleiras inundadas de Casillero del Diablo, Sunrise, e outras tisanas, encontrei um nicho com aparência de santuário, onde repousavam três dos tão falados tops chilenos. E a um preço que o meu cartão de crédito poderia suportar por uns seis meses. Pensei, refleti, calculei, e concluí que seria um investimento para reabilitar o vinho chileno com o meu paladar. Ou desistir de vez. Pelo menos eu teria um álibi para mostrar que não sou intransigente. E assim, voltei pra casa com três garrafas do que dizem ser o melhor da produção vinícola chilena, e guardei-as por dois anos numa adega climatizada, comprada especialmente para elas.

E eis que chega a hora da tão sonhada provação. Para não dissipar todas as emoções de uma vez só, servi apenas duas das três raridades. Don Melchior e Alma Viva, ambos 2005. Grande expectativa. Apreensão. Momentos decisivos na minha vida de enófilo.  Como um adolescente ansioso pelo primeiro beijo da namorada, levei a taça à boca, sem seguir os rituais aprendidos na confraria de degustação, aquele de avaliação visual, preliminares sem importância para um amante inexperiente. Os aromas do Don Melchior foram os primeiros inalados e a impressão foi muito boa: não havia aquela combinação enjoativa de madeira e frutas vermelhas, e o pimentão era bem marcante. Ponto positivo. Na boca, a estrutura bem encorpada, até meio agressivo. Em seguida, o Alma Viva não negou a meia origem francesa. O buquê, muito mais intenso e complexo, é perfeitamente correspondido no paladar, com o equilíbrio e a harmonia que para mim são os maiores indícios de qualidade de um vinho.   Naturalmente que até o último gole as impressões variaram, efeito comum de bebidas mais refinadas.

O resultado final foi satisfatório, mas continuo com um pouco de resistência a aderir a certos discursos otimistas, mais adequados para divulgações publicitárias do que para avaliações críticas.  E se não é o caso de sair empunhando bandeira chilena, pelo menos ainda não desisti de vez. Mas restou a convicção de uma coisa: mesmo sendo vinhos bem mais palatáveis que a maioria dos conterrâneos disponíveis no mercado brasileiro, somente uma carga tributária exorbitante justifica os preços absurdos que atingem nas lojas convencionais. Caso eu tivesse pago o valor comercial, estaria profundamente decepcionado. De qualquer maneira, o terceiro da lista de Rivera, um Clos Apalta 2007, continua na adega esperando a vez dele. Aí então eu vou saber se continuo a fazer excursões periódicas ao Uruguai, ou se preciso ir morar na Borgonha.

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