Um vazio cheio de nada

– Advinha o que foi que me aconteceu.
– Conta, conta. O que foi?
– Topei com o Gaiarsa numa livraria.
– Gaiarsa? Eu conheço?
– Sabe o Gaiarsa? Aquele psiquiatra meio maluco, que tinha um programa de entrevistas na TV?
– Ah, sei. Um velhinho que virou pop star da psiquiatria
– Muito requisitado, aliás, por outros entrevistadores. Ele se apresentava quase sempre de boné, fazia muitas críticas ao moralismo, e principalmente à situação da educação no Brasil. Foi ele que disse, por exemplo, que todo ser humano é um gênio em potencial até por volta dos sete anos, daí em diante a família, a igreja, a escola, e as novelas da Globo transformam o ex-futuro gênio num idiota.
– Ele falou das novelas?
– Não exatamente. Eu acrescentei esse pedaço, baseado no que ele falou.
– Aumentar o que os outros dizem não é fofoca?
– Nesse caso, não. Eu usei a recurso da lógica do contexto. Significa que essa afirmação seria coerente com o resto do discurso, mesmo sem usar exatamente essas palavras. Ou seja, ele poderia muito bem ter dito isso
– Ele gostava muito de chocar a caretice dominante.
– Sim. Dizem até – não sei, não sou eu que estou falando, eu só ouvi falar – que, uma vez, ele deu uma entrevista a um jornal, acho que pra Folha ou Estadão, dizendo que não gostaria de morrer sem ter relações íntimas com outros homens. Imagina o escândalo!
– Mas o que ele andava fazendo numa livraria por aqui? Comprou alguma coisa? Estava sozinho?
– Não, não é isso. Não foi o próprio escritor. Aliás, ele já morreu há anos. Foi um livro dele.
– Ah! E qual a novidade de encontrar um livro numa livraria?
– É que esse é um livro muito bom. É antigo. Foi publicado nos anos 70 e estava esgotado. Só adquiri essa preciosidade alguns anos atrás. Quando dei com os olhos naquele título, fui picado pela curiosidade. E já que falaste no assunto, o nome do livro é Tratado geral sobre a fofoca.
– E alguém precisa ler um livro pra aprender a fazer fofoca?
– Mas não se trata disso. É um ensaio teórico. Como o próprio título fala, é um tratado. Ele explica as várias dimensões do fenômeno. Tanto as morais, quanto as psicanalíticas, políticas, sociológicas…
– E ele não conta nenhum segredinho da alta sociedade paulista onde ele vivia? Eu adoro historinhas escabrosas.
– Não tem nada disso. É um livro sobre a fofoca, não um livro de fofocas. Vou contar assim de memória, porque já faz algum tempo que eu li. Lembrei disso agora não sei por quê. Mas é mais ou menos assim. A maior parte das pessoas do planeta gasta a vida em atividades rotineiras, triviais, despersonalizadas, onde não gozam de nenhum tipo de satisfação e de proveito, além da mísera sobrevivência. Não desfrutam nada daquilo que a gente chama de vida espiritual, nem as manifestações do intelecto, muito menos uma ligação emocional com o que fazem. Quer dizer, o simples existir não é capaz de manifestar tudo que o vivente é ou poderia ser.
– E daí? Digo o mesmo que disse antes: não precisava ler um livro pra saber disso.
– Pois é. Se a criatura não pode se revelar naquilo que faz, qual é a alternativa pra se colocar na vitrine, ser notada?
– Mas esse desejo de ser notada é só mulher que tem
– Não, senhora. O ser humano – homem ou mulher – anseia pela notoriedade, nem que seja entre os colegas de trabalho. Por isso anda sempre espalhando as coisas de que gosta, para conquistar a admiração das outras pessoas que gostam das mesmas coisas que ele, e assim ganhar reconhecimento.
– Nesse caso, faz um perfil no Facebook, e compartilha só os livros mais bacanas, as músicas mais incríveis e as fotos mais sensacionais.
– Não é o suficiente. Mas, como eu ia dizendo, pra quem não consegue se ressaltar naquilo que faz, então o que fazer?
– Sei lá. Sai pelada pra rua…
– A solução é simples. Falar. É por isso que tem gente que fala tanto. E mais ainda… Isso foi o Gaiarsa quem disse, mas eu concordo: apenas vinte por cento de tudo o que a humanidade fala é aproveitável, o resto é papo furado. E nesse lero-lero, o linguarudo gasta a metade falando bem de si próprio, e a outra metade, falando mal dos outros, que, aliás, é outra maneira de falar bem de si próprio também.
– Ihh, agora fiquei perdida. Falar mal dos outros pra conquistar a simpatia deles?
– É tudo muito inconsciente. A gente vive sempre pensando em fazer novos amigos. Só que, nessas condições, a gente vai atingir apenas outras pessoas com as mesmas características, que vão passar o tempo todo falando bem de si próprio e mal dos outros. É um vazio cheio de nada.
– Hummm. Essa conclusão filosófica é tua ou do Gaiarsa?
– É minha. Eu gosto de fazer a interpretação das coisas que leio.
– Sei. A lógica do contexto!
– Vou tentar te explicar o que eu entendi. Quando eu falo mal de uma pessoa, eu coloco nela todos os defeitos possíveis e imagináveis dentro da minha visão de mundo, que normalmente é muito limitada. E quando eu coloco o defeito na outra pessoa, automaticamente eu estou dizendo que eu não tenho aquele defeito, ou seja, eu sou um cara legal, faço tudo sempre certinho.
– Como assim, sempre certinho? Quem é que diz se isso ou aquilo é certo?
– O senso comum, ora. Bem, isso foi o Gaiarsa que disse lá no livro dele. Quando eu me guio pelo senso comum para agir assim ou assado, eu estou evitando, na verdade, ser recriminado. Quer dizer, estou morrendo de medo de que os outros falem mal de mim, de ser alvo de chacota, então me oriento pelas ideias pré-concebidas, aquelas que eu sei que terão aprovação unânime. Por isso o Gaiarsa disse uma coisa que eu achei genial: “o preconceito é o principal instrumento de conservação das estruturas sociais”. Sim, porque é na atitude autêntica, espontânea, e livre de amarras, que o indivíduo avança em termos de práticas sociais. Mas o medo de ser alvo de fofoca, quer dizer, de não ser aceito pelo grande grupo, torna as pessoas fracas e inseguras, imprestáveis para qualquer transgressão no que diz respeito às regras morais. Surge daí que a fofoca é uma grande estratégia de regulação moral da sociedade. Penso até que não é por acaso que os regimes ditatoriais utilizaram sem escrúpulos o recurso da delação, que não é nada mais do que a fofoca institucionalizada.
– Mas agora eu é que fico encucada com uma coisa. As pessoas não sabem que são moralistas e conservadoras, e quando agem, não têm um propósito consciente do tipo “vou fazer assim para manter essa estrutura social”. Então, como é que funciona?
– Isso o Gaiarsa também explica da seguinte maneira. A fofoca é a expressão de desejos reprimidos, de anseios não assumidos, pois ela não é apenas um relato sobre a vida alheia, ela é, antes de tudo, a interpretação do comportamento alheio. É nessa interpretação que o fofoqueiro projeta todas as suas fantasias reprimidas, travestidas de uma defesa moralista dos bons costumes. Falar é fácil e dá prazer. Tanto é assim que a conversa fiada ocupa quase todo o período ocioso das pessoas adultas. Além do mais, resolver os problemas dos outros é muito mais fácil do que enxergar os próprios. Assim, o fofoqueiro, na incapacidade de uma atitude ousada que dê um sentido mais amplo à sua vida, prefere restringir as motivações de seu vizinho, qualificando-as pela ótica de seus próprios medos. A vida pode se tornar entediante e vazia, mas o vazio é muito mais confortável para quem só consegue experimentar a dimensão policialesca da vida, voltada apenas para as falhas alheias.
– E essa história aí de relações com outro homem antes de morrer, sabes mais alguma coisa?
– Sei lá, isso foi um amigo meu que disse que ouviu outra pessoa falar. A vida pessoal do Gaiarsa não me interessa. Eu detesto fofoca.

1 Comentário

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    Carina Postado 5 de agosto de 2016 09:24

    Excelente. Vou usar, compartilhar, brincar com esse negócio tão sério e destrutivo que eh a fofoca.

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