Um Sonho de Natal

Um Sonho de Natal

Acho que foi efeito da bebida que tomei naquele clima de calor infernal. Noite de Natal, a gente se empolga na euforia de comemorar o aniversário do Salvador, bebe um pouco mais, e aí já viu. E era vinho branco, geladinho. Vinho tinto é na Páscoa, aquela história de isto é o meu sangue, coisa e tal. No Natal pode ser branco. Ou não pode? Vai ver que foi por isso. Foi um castigo. Eu tive um pesadelo. Tá, nem foi um pesadelo, só um sonho ruim que me fez acordar suando. É que fazia um calor dos diabos.

Mas foi assim: eu ia caminhando numa trilha, dessas de caminhadas ecológicas que os grupos de turistas fazem. Só que eu ia sozinho. Era tipo uma peregrinação no dia de Natal, e o sol queimava a cabeça da gente cá em baixo. O caminho passava por um vale no meio de umas montanhas, quando me dei conta, não sabia mais onde eu andava. Quer dizer, totalmente perdido. Aí, olhei prum lado, olhei pro outro, só montanha, e lá em cima, o céu. Segui andando, eu acreditava que naquele rumo eu chegava a algum lugar. Quando de repente, olhei pra frente, em cima de uma pedra, um velhinho de barba branca, e uma roupa esquisita, que visto de longe se assemelhava a um vestido longo, marrom ou vermelho, nem sei direito, amarrado na cintura com um laço branco. E o mais estranho é que de imediato eu sabia quem era, assim, na base da intuição, ou da fé. De início, até tive umas dúvidas, mas assim que cheguei mais perto, confirmei. O velhinho era deus. Isso porque ele disse que não podia chegar muito perto, que a luz dele podia me cegar, e aquelas coisas que nem do filme do Charlton Heston. Mas aí eu perguntei

– O que o senhor anda fazendo por aqui?

– Descansando um pouco. Nessa época, lá em cima, chegam muitos pedidos dos humanos. É um saco, não consigo atender todo mundo nem na eternidade. Não aguento mais o período de Natal.

– E como chegou até aqui? É que eu estou perdido.

– Basta eu dizer que quero estar em algum lugar, e pronto, já estou. Na verdade, faz alguns dias que cheguei. Assumi uma identidade falsa de humano e fui dar um passeio na cidade, ver de perto como anda meu povo, mas desisti, vim procurar um refúgio calmo pra relaxar.

– E o que achou desse nosso mundo? Pra mim é tudo muito confuso.

– Confuso e decadente. Bem como disse o Caetano, aqui tudo parece construção e já é ruina. Até as pessoas são muito mais velhas do que eu imaginava lá de cima. Todo mundo sofrendo por besteira, envelhecendo antes do tempo. Vão morrer cedo. O Adão, que não tinha vaidade nenhuma, viveu novecentos e sessenta e cinco anos.

– Até as mulheres? O que o senhor achou delas?

– Essas fazem todo o tipo de maluquice pra esconder a decadência. Eu fico até com pena, mas não vou me meter mais. Os conselhos que eu dei pra Eva não adiantaram de nada, então, larguei de mão.

– Ah, ainda mais o senhor que gosta das novinhas.

Deus me lançou um olhar ameaçador, mas disfarçou em seguida e fez que não tinha entendido. Nem esperei ele falar e acrescentei.

– Aquela história de emprenhar virgens. Eu leio a Bíblia.

Ele trocou de posição em cima da pedra, se acomodou melhor, e falou, como se desculpando.

– Pois é. Eu precisava de um filho pra organizar a bagunça que estava isso aqui em baixo. Querias que eu fizesse o quê? Esperasse a menina crescer, estudar, arrumar um emprego? Aí ela virava feminista.

– Ué, mas não foi o senhor quem criou tudo, inclusive o feminismo?

– Não. Eu não criei tudo o que existe. Se tu leste a Bíblia, sabes que houve um dos meus súditos que se rebelou, queria fundar um partido de esquerda no céu. Dei-lhe um chute na bunda e mandei pros quintos dos infernos. Então ele veio aqui pra terra azucrinar os fracos com tentações. No começo, ele só oferecia maçãs, e conhecimento, mas aí as pessoas foram ficando gananciosas, o olho cresceu, queriam roupas de grife, carros de luxo, e aí ele inventou a propina, a corrupção, o socialismo, o partido de esquerda. E também o feminismo.

O criador parecia muito triste, e embora eu não pudesse ver totalmente seu rosto por causa da barba grande e da distância mantida entre nós, tive a impressão de que havia uma grande frustração com a humanidade. Tentei retomar a conversa

– Mas deus, me diga uma coisa, que eu sempre tive curiosidade. Por que o senhor não destruiu o dito cujo, o coisa ruim, e todo esse pandemônio que ele espalhou na terra? Não podia simplesmente enquadrar numa única lei toda essa pestilência que o chifrudo lançou no mundo e revogar tudo, assim como o Temer tá fazendo hoje?

– Não é tão fácil assim. Criar é barbada, mas descriar é outra coisa. Preciso ter uma justificativa.

– Mas e essa súcia que inferniza a vida da gente, o Sartori, o Temer, Bolsonaro, Crivella, o Trump, não é um motivo suficiente?

– Eu não me meto em política.

– Ah, o senhor não, mas a sua Igreja, os padres. Sem falar naqueles que se metem na política em seu nome. O Crivella, por exemplo, fala muito no senhor.

– Não sei quem é, não conheço.

Dava pra ver que ele se irritou quando eu falei na promiscuidade dos padres e a política, mas eu estava tomado de uma sensação tão extraordinária, me sentia muito corajoso e resolvi espichar um pouco mais o assunto. Mas me ocorreu testar se ele sofria daquela vaidade masculina tão comum aqui na terra.

– Mas voltando à mocinha de que falei antes. Aquela história de engravidar só com o espírito é só pra enganar os trouxas, né?  Os deuses gregos viviam copulando com as humanas, mas eles assumiam a culpa.

– As histórias dos gregos eram tudo invencionice, superstição. Não mistura as coisas.

Ele, visivelmente irritado, mas eu, possuído pelo espírito maligno da provocação, continuei:

– O senhor pegou a menina, levou pra estrebaria e mandou brasa.

– Não era estrebaria, seu burro, era uma manjedoura. E essa só apareceu depois, quando o guri nasceu.

– Manjedoura é o cocho que fica na estrebaria, portanto é a mesma coisa. É onde os animais vão comer, sem duplo sentido. Então, seu filho nasceu numa estrebaria. A propósito, pelo que eu li na Bíblia, o pirralho quase se ferrou. O senhor deixou o filho assim abandonado numa manjedoura ou estrebaria, só com a menina adolescente e um carpinteiro que quase nunca se manifesta. Depois o outro rei lá queria matar o guri e matou um monte por engano. O senhor não deu a atenção que devia. Se fosse hoje o senhor seria processado por abandono de incapaz.

– É que a coisa tinha que ter um apelo dramático pra render uma boa história. Naquele tempo o povo já gostava muito de melodrama. E ainda não existia uma maternidade, obstetra, essas bobagens de hoje. Além do mais, naquela época, era natural uma menina parir cedo, ninguém se incomodava, e não existia uma Maria do Rosário pra encher o saco.

– Ué, pensei que o senhor não gostasse de política.

E foi aí que ele deu um pulo de onde estava e se veio em direção a mim, os olhos dele começaram a soltar fogo e eu vi que ele tinha o propósito bem claro de revogar a minha existência. Saí correndo e gritando e acordei todo suado.

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