Um mundo de procuras e espantos

Caio Fernando Abreu morreu em fevereiro de 1996, aos 48 anos de idade. Já tinha conquistado o reconhecimento do público e da crítica como autor de uma obra consagrada entre as principais realizações da Literatura brasileira das últimas décadas do século XX. Mas, em comparação a outros escritores, o que o torna uma figura singular entre os grandes nomes da Literatura nacional é o ponto de vista adotado para abordar as mazelas humanas.

Caio nasceu no interior do Rio Grande do Sul, numa região fronteiriça. Transferiu-se para Porto, Alegre ainda adolescente, nos anos sessenta, para continuar os estudos. Nessa época, o astro mais brilhante da literatura dos pampas era Érico Veríssimo, cuja obra mais importante tratava da formação histórica do estado gaúcho, na qual desfila uma constelação de heróis valentes e destemidos guerreiros, dispostos a dar a vida por uma causa nobre, qualquer uma, desde que pudessem demonstrar sua fibra de macho intrépido.

Caio não se interessou muito por heróis farrapos. A paisagem que se abria à sua frente não era a imensidão verde dos campos, vista de cima de um cavalo, onde cada gesto é uma demonstração de coragem e valentia. Ao contrário. No meio urbano da capital onde se instalou, a visão era a de um menino tímido que espreitava o mundo através de uma vidraça embaçada. E isso não por cegueira ou covardia. A realidade brasileira transformara-se violentamente quando o autor lançou seu primeiro livro, O Inventário do Irremediável, no começo dos anos setenta. No plano político, a ditadura militar não permitia que se enxergasse além de campos verdejantes impregnados de ordem e progresso. No plano econômico, as terras produtivas se concentravam em latifúndios, expulsando pequenos proprietários, obrigando-os a buscar abrigo nas grandes cidades. O resultado foi um crescimento vertiginoso e desordenado das principais capitais brasileiras, onde uma chusma de retirantes se aglomera em busca de sobrevivência. São criaturas atordoadas por um violento choque de identidades, por não se sentirem incluídas no ambiente por onde perambulam. Essa multidão de deserdados vive intensamente a procura de um espaço protetor, mas vivencia apenas o espanto ao se deparar com uma realidade totalmente adversa.

Pois é essa condição existencial do homem urbano que interessa ao jovem Caio. E para traduzi-la em literatura ele não se orienta por escritores locais, tão ocupados com heróis farroupilhas e aventuras campeiras. Sua maior fonte de inspiração é Clarice Lispector, não só na abordagem dos temas, mas principalmente, na elaboração de uma linguagem mais adequada à representação de uma realidade caótica. No primeiro livro de Caio, já mencionado, é inegável a influência da escritora.

Um dos traços característicos dos anos setenta é a perda das ilusões com as utopias. Esse estado emocional se reflete na obra de Caio, onde os personagens estão constantemente à deriva, sem se ligarem a nada, e os sinais de uma identidade construída são muito frágeis. O mundo torna-se algo estranho, o sujeito não se identifica mais com a realidade exterior. Jogado no meio da massa humana, o homem urbano das grandes metrópoles vive sob a experiência do anonimato. Essa condição, por outro lado, proporciona-lhe uma sensação de liberdade para descer ao ponto mais profundo de sua intimidade.   Esse mergulho se concretiza na busca de uma essência do humano que, no final das contas, é a procura da verdadeira identidade, aquela que a pessoa assume ao despir as máscaras impostas pelo convívio social. Mas o conforto de um lugar seguro onde o vivente possa se abrigar parece nunca ser desfrutado em toda a obra do escritor. As expectativas de descanso são constantemente frustradas pela falta de concretude das coisas, como sintetiza o seguinte trecho de um conto, não por acaso intitulado “itinerário”, do livro O Inventário do Irremediável:

“A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos”.

Como se pode ver, esse não é um espaço para heróis. Aqui não há lugar para atos de bravura e valentia, e a causa mais nobre é apenas manter-se num nível mínimo de sobrevivência, seja física ou existencial. Pois esses personagens não vivem mais numa integração ideal com a natureza, eles estão espremidos entre lajes de concreto; para eles, a vastidão do céu transformou-se em nesgas vislumbradas por frestas entre as paredes dos arranha-céus. São apenas número insignificante num espaço onde a arquitetura essencialmente funcional expulsou qualquer vestígio de humanidade. E onde tudo é calculado com base na objetividade e racionalidade. Nessas condições, a sensação de opressão e invasão é constante.

No livro Pedras de Calcutá, lançado em 1977, essa experiência da invasão é mostrada em quase todos os contos. A partir de uma situação de equilíbrio, algo acontece, instalando o caos na vida do personagem, que não consegue mais recuperar a posição original. No caso do conto “Até oito, minha polpa macia”, uma mulher de 29 anos que “dedilha o tédio abaixo do umbigo”, vive um momento de descontrole produzido por um fluxo de consciência, que aparece como uma invasão, onde a linguagem explode em delírio, e as palavras, idéias, imagens vão surgindo como uma enxurrada. A personagem não tem nenhum domínio sobre seu próprio discurso, porque as imagens lhe assaltam a mente e se transformam em palavras que lhe saem pela boca, sem que ela própria entenda o que significam.

Por outro lado, no conto “Sim, ele deve ter um ascendente em peixes” a situação é de total estranhamento.  Um homem volta à noite pra casa onde mora há 15 anos e não reconhece nem a casa nem a rua. A chave não serve na porta que ele tenta abrir inutilmente. Dirige-se a um homem negro que está sempre na parada do ônibus, mas recebe dele apenas respostas desconexas. O negro pergunta se ele quer alguma coisa e ele responde que não fuma. Mais adiante ele pergunta ao negro o nome da rua e recebe como resposta que o outro não tem fósforo. No mais das vezes a interação entre os dois é apenas por ações, e por pressupostos. Ele acha que o negro quer alguma coisa, assaltar, matar, e age como se já estivesse sendo assaltado. A ação termina com o estranho dizendo que não quer dinheiro, quer apenas prazer. É na experiência do prazer que a busca de identidade se intensifica. Diluído no meio da multidão, livre dos olhares dos outros, o indivíduo está livre para ir ao encontro do mais íntimo de si mesmo. E essa viagem interior é o tema básico dos contos de Caio.

Ao distanciar-se dos temas e abordagens restritos da cultura gaúcha, e aproximar-se de uma das maiores escritoras brasileiras, Caio Fernando Abreu conquista uma posição indiscutível, pela originalidade e intensidade da obra, entre os melhores escritores da literatura nacional.

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