Um dia de cão

Na sociedade contemporânea, o casamento é o ápice da realização pessoal. Pelo menos o ritual, aquele momento em que duas criaturas se expõem ao ridículo de repetir frases feitas, gestos estereotipados e olhares melosos só para dar satisfação aos amigos e parentes, porque o desdobramento, a convivência cotidiana que espera o casal depois da solenidade não importa muito. Quer dizer, numa cultura que sofre da esterilidade das convenções, fica subentendido que a vida pós cerimônia é uma batalha a ser conquistada com sacrifício e determinação, pelo bem da sociedade, diria até, da humanidade, pois que a união conjugal subentende, desde sempre, o acasalamento entre um homem e uma mulher para fins de procriação e perpetuação da espécie.

No Cristianismo, essa esquizofrenia da fé que criou o conceito de amor ao próximo como o estágio mais elevado da evolução espiritual, a interação pacífica com o vizinho é uma obrigação prescrita por deus, que aliás, também não passa de mais uma invenção humana.

E para o grego Aristóteles, que devia sofrer crises de pânico e medo de ficar sozinho, o Homem é um animal social. Ele achava que as relações sociais harmoniosas eram uma questão de inteligência para garantir o bem estar da comunidade, que não era nada mais do que viver sem se estressar demais.

Pois a burguesia, que assumiu o comando da sociedade ocidental uns quinhentos anos atrás, teve a infeliz ideia de herdar o pior do cristianismo e o mais simplório dos gregos para arquitetar uma nova sociedade. Daí que o convívio social passou a ser, não só uma qualidade humana, mas uma demonstração de civilidade e de bom desempenho social. E no caso do Brasil, ainda tivemos o pai do Chico, que veio com aquele papo de que o brasileiro era o homem cordial e acabou com a possibilidade de uma opção pela solidão. Sem falar no Tom Jobim que decretou que é impossível ser feliz sozinho.

Esqueceram esses adeptos da comunhão que entre os gregos também vivia o cínico Diógenes, que muitos anos antes do Chaves já escolheu um barril como morada. Esse singular filósofo perambulava pelas ruas, dormia em praça pública, onde fazia suas necessidades fisiológicas como um cão vira-latas, e repudiava o convívio com outros seres humanos, pregava o desapego às coisas materiais e o desdém às regras sociais que dão ao indivíduo uma falsa sensação de segurança e felicidade. Diógenes descobriu no comportamento canino o símbolo de sua ética de vida, pois o cão vive ao relento, desprendido de luxo e conforto. Tenha-se em conta que naquela época ainda não existia a classe média que, com sua histeria consumista, sustenta as pet shops e insiste na crença de que os bichos padecem dos mesmos devaneios sentimentais que os humanos. E dos primitivos cristãos, os novos ricos ignoraram os monges ascetas que se enfurnaram em alguma toca no deserto e lá curtiram, num êxtase de solipsismo, a sua fé religiosa.

Tudo isso faz do brasileiro um povo insuflado por um sentimento de veneração do convívio abençoado, que desconhece os benefícios da solidão existencial. É por isso que no Brasil, onde a elite se apoia nos delírios cristãos para construir suas fantasias de plenitude social, qualquer indivíduo que queira optar por uma vida solitária é visto com desconfiança, chamado de esquisito, quando não de outros adjetivos menos condescendentes. E para aqueles rebeldes que, por aversão social ou por simples capricho pessoal, resolveram andar a margem das amizades compulsórias, não há momento mais insuportável do que uma data festiva, dessas em que o comércio explora ao máximo a compulsão pequeno-burguesa pelo consumo desenfreado, como prova de afeto e comportamento civilizado. Basta o insistente solitário insinuar que não vai dar presente de Natal a ninguém, não vai participar do amigo secreto na empresa, ou, o pior dos crimes, não vai levar uma lembrancinha pra mãe no dia decretado para o filho passar numa loja no shopping center e deixar as provas de sua devoção filial traduzida em números na fatura do cartão de crédito, e pronto, já é o suficiente para o dito cujo desnaturado ser alvejado por olhares que oscilam entre a piedade e o horror, e não raro precise se livrar de alguma oferta de companhia, convite para compartilhar aquele dia comemorativo e ter a quem abraçar e de quem receber um abraço. Não entendem essas almas convencionais, pobres vítimas do cristianismo sentimentalista, que, para alguém que já se iniciou na arte do escárnio e do cinismo grego, a única profissão de fé é o desprezo pelas hipocrisias e pela sociabilidade fútil. Para esse, não há nada mais agradável do que viver o seu dia de cão.

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