Trabalho de superherói

Na minha infância não tinha superherói. Não estou falando de um pai superprotetor, um tio malucão, ou um irmão mais velho metido a sabe-tudo. Refiro-me a essa legião de entidades maravilhosas, onde as crianças se refugiam do convívio dos adultos. Superhomem, Batman, Homem-aranha, nada disso me empolgava. E segui, por vários anos ainda, desacompanhado de qualquer um desses semideuses. Nunca fui um adolescente deslumbrado por nenhuma banda de rock, nenhum astro pop. É claro que não saí imune à experiência da idolatria. Primeiro foi pelo Raul Seixas, de quem sabia quase todas as letras de cor; depois, pelo Chico Buarque, em quem eu vislumbrava o humor e a irreverência.

Mas, no âmbito dos quadrinhos, minha devoção era toda consagrada ao Superpateta, a única figura dos gibis pela qual eu me deslocava até a banca de revista e gastava os trocados que conseguia juntar. Da mesma maneira, não perdia um só episódio das aventuras de Maxwell Smart, o agente 86, o maior paspalho de todos os tempos a ocupar um cargo de detetive. Ainda hoje me impressiona essa antiga preferência pelos patetas.

Como se vê, meus ídolos, nessa primeira fase, não eram os mais recomendados para uma identificação saudável. O  Superpateta seguidamente se estatelava no chão ao acabar o superamendoim no meio de um voo; o Max, muitas vezes, perseguia a própria sombra pensando se tratar de um agente da Kaos; Dom Raulzito morreu de cirrose, aos 44 anos, deixando uma multidão de fãs na orfandade. Só restou o Chico. E esse virou escritor.

Muitos anos depois, eu ousaria me lançar no mesmo caminho. Mas antes, eu carecia descobrir o universo da literatura. Meu interesse por aventuras fictícias despertou um pouco mais tarde. Quando me dei conta do atraso, pulei a etapa dos intrépidos mascarados e fui, já na adolescência, buscar a companhia de gente mais verossímil. E uma das primeiras criaturas a me aparecer foi o Aliocha Karamazov. Como me compadeci do desespero do coitado, a dúvida quanto à inocência do irmão querido, misturada com a dor pelo assassinato do pai. Mais adiante, viajei por terras distantes atrás de Philip Carey e sua servidão quase desumana aos caprichos da amada Mildred. Cavalguei pela Espanha ao lado de D. Quixote, sempre na luta inútil contra inimigos inexistentes, e fui aportar a uma ilha desconhecida na embarcação de Robson Crusoé, naufragado no desespero de recomeçar uma vida fora de todos os parâmetros anteriores.

Assim, eu descobria uma nova dimensão habitada por seres inseguros, atormentados, dilacerados por conflitos existenciais, muito distante das fantasias juvenis inspiradas em mocinhos e bandidos. Depois, já em terras brasileiras, outras amizades surgiram: Brás Cubas e o vazio de uma biografia medíocre; Riobaldo e o eterno questionamento sobre sua própria natureza. Todos eles indivíduos angustiados e impotentes para superar os condicionamentos a que foram submetidos.

A intensa convivência com esses personagens me deixou mais resignado com as fragilidades humanas. Por conseguinte, nem preciso me armar de coragem para andar na rua sem o uniforme da invencibilidade. Às vezes, quando tenho pressa, até seria interessante me transformar no Nacional Kid e sair voando, pelo menos para evitar congestionamentos de trânsito. Mas, tenho de aceitar minha condição de vivente limitado e me movimentar caminhando, ou, no máximo, no volante de um carro sem nenhum recurso extraordinário, nem de longe parecido com o do homem morcego.

Portanto, o apelo à palavra escrita pareceu o meio mais viável para ir em busca do tempo perdido. Sem habilidade para truques fantásticos, tomei gosto por essa brincadeira de tecer espaços irreais, povoados por habitantes irreais. Mas fui buscar os modelos naquelas pessoas mortificadas pelas necessidades vitais, enredadas em novelos de perplexidades e incertezas.  Ainda me faltam os superpoderes para dominar as técnicas da criação e abater os vilões mais traiçoeiros, como as frases feitas, o lugar comum e os clichês em geral. Nada que uma disposição heróica não supere. Quem sabe um dia eu adquira a capacidade de, com um simples piscar de olhos, gerar uma obra perfeita. Mas aí, provavelmente, vou perder a vontade de escrever. Essa pretensão de recriar tudo é uma característica de quem não consegue andar entre os mortais com a desenvoltura daqueles seres indestrutíveis, cheios de vigor e bravura, que preenchem o imaginário infantil. É uma obsessão de quem anseia forjar seus próprios heróis.

1 Comentário

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    Mauricio Duarte Postado 12 de maio de 2014 21:59

    Por algum motivo, que eu não sei qual é, exatamente, identifiquei-me com o seu texto, embora minha infância e juventude todas tenham sido recheadas de histórias em quadrinhos de super-herói. Talvez, seja porque apesar da minha idolatria aos “supers”, eu nunca tenha levado eles muito a sério (sim, tem gente que leva a sério e muito), relegando a uma espécie de limbo todo o meu carinho para com eles. Um forte abraço.

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