Todo castigo será desnudado
(Foto: Erica Simone)

Quando eu era bem mais jovem, na idade em que a gente quer quebrar tabus e se livrar dos andrajos da moral repressora, frequentei uma praia de nudismo. Ao vislumbrar a filosofia naturista, assinei uma revista chamada Naturis, e comecei a espanejar o bolor ainda remanescente de uma educação revestida com pesada roupagem moralista. 

Foi num carnaval. Nem precisei me preocupar em adornar uma fantasia. O grupo de foliões era formado por quatro pessoas, na verdade, dois casais, pois uma das primeiras normas da colônia era que homem não entrava desacompanhado de uma mulher. Havia aí uma desconfiança em relação ao homem entregue a sua própria natureza, e uma aposta bem generosa em relação às mulheres. Já de início, conjecturei que essa restrição era fruto de estereótipos, mas não fui além dessa observação, e penetramos no recinto dos pelados sem maiores constrangimentos.

Por mais que os trajes de banho sejam minúsculos, entrar no mar sem aos menos uma fitinha de simpatias amarrada no pulso é uma sensação que um puritano não conseguirá entender por descrição. E se esse mergulho for acompanhado de uma pessoa com quem a gente está curtindo a dimensão erótica da vida, então, o prazer só será entendido por quem já o gozou. O problema é que lá no reduto dos descamisados e descalçados, havia mais regras de comportamento, quase todas dirigidas aos homens. E uma delas avisava que a nenhum homem era permitido revelar de maneira muito proeminente o seu entusiasmo com os corpos femininos que desfilavam a sua frente. Caso um mancebo fracassasse na tentativa de autocontrole, era-lhe sugerido que fosse se refrescar na água – sozinho, é claro. Se esse tratamento de choque não resultasse numa pose adequada aos bons costumes do local, lá vinha o agente de segurança, com dedo em riste, e convidava o banhista a se retirar da praia. Poderia até deixar a companheira, mas ele deveria se retirar.

É claro que eu, devido às leituras prévias sobre o assunto, já conhecia o código de conduta dos praticantes de nudismo, de sorte que eu próprio me cuidei para não levantar suspeitas de mal educado. Mas, quando assisti a uma cena explícita de cerceamento a esse estilo de declaração mais sincera do homem, minha excitação com as propostas naturistas começou a brochar. O paramento retórico dos naturistas pretende que essas erupções de desejo sexual masculino são apenas sintomas de um condicionamento cultural; que o corpo é algo tão natural quanto uma árvore ou uma pedra, e que os delírios de pessoas reprimidas é que rebaixam a carne à condição de objeto de desejo incontrolável.  Ora, que o corpo nu é algo muito natural, nem um padre seria capaz de contestar. Acontece que, por uma simples necessidade de conservação da espécie, o desejo sexual também é. Se eu vejo uma mulher nua, ou mesmo dentro de um modelito provocante, é muito natural que meu instinto se inquiete e tente atrair a atenção de quem pode acalmá-lo. O que é cultural, fruto de uma mentalidade machista e sexista, é essa concepção de que os impulsos são doenças que precisam ser aplacadas com urgência, às vezes até com violência, mesmo sem a participação espontânea e voluntária da mulher desejada. Porque, afinal de contas, o ser humano não é só pulsão carnal, é também fruto de representações culturais que possibilitam o convívio civilizado entre as pessoas de ambos os sexos. Creio que essa alegação de pureza do corpo nu, imerso na calma do paraíso, imune às tentações, é um discurso retrógrado, que suprimiu do corpo a dimensão mais fascinante e natural: o erotismo. E por isso abandonei os nudistas.

Alguns anos mais tarde, voltei a me dedicar a esse assunto por causa dessa mania, que vem se tornando moda, sobretudo entre pessoas jovens, de tirar a roupa em público, por qualquer motivo. À primeira vista, suspeita-se de uma opção pelo marketing, pois numa sociedade onde ainda persistem níveis tão alarmantes de moralismo e repressão sexual, o nu é notícia garantida. Mas há outro aspecto. Aqui o corpo nu se transforma num objeto agressivo. Não mais o corpo puro, sem arrepios e sem vertigens que desfilava no paraíso naturista, mas o corpo castigado pela violência urbana, o corpo que reage, se contorce e grita, mas não de prazer, e sim para conquistar um status de dignidade e construir uma sociedade onde cada um possa escolher a vestimenta que mais lhe agrade.

Atualmente, tem crescido cada vez mais o desconforto das pessoas com suas vestes. Na última feira do livro de Porto Alegre, uma moça livrou-se da indumentária em praça pública para, segundo ela, chamar a atenção para a necessidade de leitura. Não sei se ela sabia que feiras de livro são frequentadas, em geral, por pessoas que já sabem que ler é uma atividade necessária. Mas isso não vem ao caso, pois eu ainda refletia sobre a eficácia desses métodos, quando outra revoltada com o condicionamento humanos despiu-se de pudores e sacou fora seus indumentos. Dessa vez foi em Nova York. Ela passeou pelo Central Park, entrou em bancos, bares, metrô e todos os lugares para onde a vida cotidiana nos empurra. Só não entrou no próprio roupeiro para pegar sequer um agasalho para enfrentar o frio nova-iorquino. Não sei qual era o propósito dessa última, qual a injustiça humana para a qual ela estava empenhada em chamar a atenção. É que os holofotes focaram tanto a figura dela que os motivos ficaram ofuscados.

Lá pelos anos setenta, um comercial de televisão afirmava que Adão e Eva não se vestiam porque uma determinada loja ainda não existia. Tenho muitas dúvidas a respeito disso. É bem verdade que se o criador tivesse inaugurado a tal loja e deixasse a administração por conta do primeiro casal da história, Eva teria mais o que fazer além de vagar pelo paraíso à procura de frutos proibidos. Mas a verdade é que andar em pelo é gostoso. E acho até que é mais saudável do que enxovalhar-se de panos apertados e desconfortáveis. Mas a nudez é válida quando for uma estratégia para desnudar os castigos impostos ao corpo pela moral castradora. Do contrário, é apenas mais uma etapa da degradação do corpo, exposto como um fetiche à avidez do consumo despersonalizado.

2 Comentários

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    Gina Eugênia Girão Postado 10 de dezembro de 2013 10:09

    Amo dormir nua; viveria nua, se pudesse. Em minha casa, ficar nu é despretensioso, feito tomar um copo d’água – e a água que se toma em minha casa é de excelente qualidade, como poderia a de todos. Gostei demais da crônica: lucidez – como a nudez – não deveria ser privilégio, mas é.

    • Ademir Furtado
      Ademir Furtado Postado 11 de dezembro de 2013 10:01

      Olá Gina,
      Obrigado pela visita e comentário.
      Eu também viveria nu, se pudesse. (Aqui no Sul faz muito frio no inverno).
      Como isso não é possível a gente vai se vestindo com palavras para desnudar essa hipocrisia e esse medo do corpo.
      Volte sempre

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