Sobre um escritor

Gosto de pensar a literatura como uma re-apresentação da vida real. Não uma cópia fiel como pretendiam os realistas do século XIX. E não descuido das controvérsias sobre o conceito de Realidade. Mas a literatura é uma via de reconstrução cuja matéria prima é a condição humana. Justamente por não se tratar de um relato jornalístico, ela tem esse poder de apresentar alternativas ao cotidiano vivido. Para isso, ela penetra nos vazios entre os fatos concretos e traz à luz novos ângulos de abordagens.
É óbvio que há o perigo de acontecer o contrário. Em vez de investigar outras possibilidades existenciais, a ficção pode se contentar com a camada externa dos fenômenos. E nesse caso, não importa muito se é para condenar ou reafirmar, pois o resultado é sempre uma constatação de que não há nada mais a conhecer. Mas isso é uma opção do escritor condicionado pela sua capacidade de percepção e interpretação do real, e não uma característica da literatura.
Foi com essas divagações que concluí a leitura de About a Boy, de Nick Hornby, romance editado no Brasil com o título de Um Grande Garoto, e transformado em filme de sucesso, com o galã Hugh Grant. Vale mencionar, só por curiosidade, que em Portugal, a tradução foi batizada de Era uma vez um rapaz.
E o rapaz em questão se chama Will. Tem 36 anos, único herdeiro de um casal já falecido. Mas antes de morrer, o pai garantiu ao filho as regalias do ócio, graças aos direitos autorais de uma canção de natal. E para completar o modelo de homem dos sonhos de qualquer mulher em busca de casamento, ele é bonito, educado, simpático, e muito charmoso. Mas, para não competir com a perfeição, há uma mácula nesse quadro: Will é um mulherengo incorrigível. É aquele tipo que as mulheres chamam de cafajeste, um homem para quem uma mulher só existe como uma conquista em potencial. Se uma fêmea à sua frente não tiver a medida certa para completar a cama, será ignorada. Preencher os dias não é tarefa penosa para Will: em casa, assistir televisão e ouvir Nirvana; na rua, correr atrás de mulheres. E, acima de tudo, evitar qualquer coisa que possa perturbar esse interminável sossego.
Esse perfil de Peter Pan moderno com que o personagem é posto em destaque tem uma explicação. Ele nunca precisou crescer. Os traços mais salientes da personalidade de Will são o narcisismo, a preocupação exclusiva com o próprio bem estar, e a incapacidade de manifestar a outra pessoa qualquer interesse que não seja sexual. Até aí, nada demais, se não houvesse, no contexto geral, uma conexão muito sólida entre todos esses itens. Ao chegar ao ponto final, o leitor é conduzido a um juízo implícito: um homem adulto que não consegue se envolver afetivamente com uma única mulher é um imaturo.
Eis aí o perigo de se manter na superfície do já conhecido. Essa avaliação psicológica dos misógamos é um dos grandes clichês do senso comum, propagado, inclusive, por alguns catecismos com pretensões científicas. As culturas consolidadas se apoiam em conceitos definidores de valores morais, e esses valores são reproduzidos em rituais de passagem que o indivíduo deve vivenciar, sob pena de ficar à margem da sociedade. Assim, um homem de 36 anos que não se estabeleceu numa carreira, não casou, não construiu uma família, e, para quem o substantivo mulher só existe no plural, é uma eterna criança malograda na tarefa de se tornar adulto. Não há, na obra analisada, um único vestígio de desconfiança sobre o status sacralizado de um desses rituais de passagem.
O tom conservador ainda é observado na composição do personagem. Will é um admirador convicto da banda Nirvana e do vocalista Kurt Cobain, ídolo da juventude revoltada dos anos 90. Não por acaso, uma das canções do grupo se chama About a Girl. Mas essa admiração é mostrada como uma pose cool, uma performance executada apenas para seguir a tendência da época, sem maiores consequências. Afinal, que motivos teria Will para se revoltar?
É evidente que o livro não se resume a esse moralismo simplório. Há pelo menos dois aspectos que compensam a leitura. O primeiro, a verve humorística que pinta os quadros mais coloridos ao longo das quase trezentas páginas. Em segundo, a habilidade com que o autor evitou o maniqueísmo vulgar, tão comum nesse nível de abordagem. É indisfarçável a compaixão que o criador nutre pelas limitações humanas de suas criaturas. Apesar de refugiado numa eterna infância, Will é um sujeito bom caráter, pintado como vítima de uma sensibilidade reprimida que no final, apesar de tudo, vai lhe conduzir à tão difícil maturidade. Pelo menos àquilo que Nick Hornby e o senso comum entendem como maturidade.
E o momento inicial dessa jornada é o encontro com outra personagem, um garoto de 12 anos, o oposto de Will. Marcus é um exemplo comum de criança-problema. Também filho único de pais separados, solitário, deslocado na escola, ridicularizado pelos colegas, debate-se num constante desespero para crescer e fugir de uma desconfortável infância controlada por uma mãe sobrevivente a uma tentativa de suicídio. É justamente quando os caminhos de Will e Marcus se cruzam que a dupla vive as peripécias mais excitantes dessa aventura. A partir daí, o narrador negligencia os demais personagens e se dedica a vigiar os dois garotos pelas ruas da cidade, uma amizade narrada com muito humor, ironia, e uma sutil crítica moralista aos costumes da Londres dos anos 90
Não acho que a posição do autor em relação ao tema abordado seja determinante de sua importância literária. Também não devoto minha atenção apenas a textos que reafirmem minhas próprias crenças. Creio, apenas, que num caso como esse, em que a narrativa flutua na simplificação das ideias comuns, a literatura deixa de atualizar uma das suas mais importantes e ricas potencialidades.

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