Realidade fictícia

Um assunto que tem me fascinado bastante há alguns anos é a relação entre história e literatura. Há muita coisa escrita sobre o tema.

Por um lado, temos a realidade histórica como matéria prima para a ficção. Aqui está implícito uma concepção de arte como representação da realidade. A maioria dos seres viventes se contenta com as manifestações imediatas do mundo. Mas alguns indivíduos, privilegiados por uma sensibilidade mais aguçada, são tocados também pelas nuances mais sutis do vivido. Como os habitantes da caverna platônica que conseguiram chegar ao lado de fora, eles recriam essa experiência através de narrativas fictícias, a fim de mostrar aos seus semelhantes a complexidade da vida e denunciar a falsidade das aparências projetadas nas sombras. É a história como fio condutor da ficção

Por outro lado, o historiador sempre recorre a um pouco de ficção para preencher o espaço entre os dados colhidos na pesquisa, por mais séria que ela seja. Um texto historiográfico também precisa de um ponto de vista, um recorte no tempo e no espaço, e isso não deixa de ser uma construção a priori do conteúdo descrito. Em outras palavras, um recurso às técnicas de ficção, usada como instrumento para contar a história real.

Lembro de uma biografia de Dostoievski em que o autor relata o deslumbramento de Ana Grigorievna ao ser pedida em casamento por aquele que ela admirava como escritor e já amava como homem. É verossímil que a então estenógrafa tenha se sentido feliz, pois, afinal de contas, ela aceitou o pedido sem vacilar, e, ao que consta, foi a grande companheira do escritor até o final da vida. Mas a descrição do estado de espírito da futura esposa, ainda que tenha se baseado em diários da própria Ana, faz parte do propósito do autor de mostrar que Dostoievski teve uma vida menos atribulada na velhice do que na juventude. A imaginação preencheu, com certa dose de honestidade, o vazio entre os registros concretos, e isso não diminui em nada o aspecto de verdade histórica.

Um livro no qual essas duas dimensões da narrativa, a real e a fictícia, se entrelaçam numa teia de significados é Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. A autora se empenhou por vários anos num imenso trabalho de pesquisa para recriar com fidelidade os meandros do então mais influente centro de poder do planeta.  Mas não se limitou a uma descrição realista da biografia de um homem poderoso. Ela vasculhou os labirintos de uma cultura prestes a desaparecer e com o mesmo assombro de quem viu as legiões de bárbaros diante dos muros de Roma, ela sentiu os temores da decadência iminente. Não por acaso, o Adriano de Marguerite Yourcenar ocupa seus últimos dias de vida para relatar suas aventuras a um jovem Marco Aurélio, futuro herdeiro, de alma e de trono.

Segundo declarações da própria autora, ela se beneficiou das liberdades de ficcionista para a construção do seu personagem, sobretudo ao atribuir a ele certo poder de clarividência, ou concepções de mundo que só viriam a ser desenvolvidas nos séculos seguintes. Mas essas características estariam de acordo com a personalidade do imperador, vislumbrada através de reformas que ele patrocinou no campo da economia e do direito, transformando o império romano naquilo que para Marguerite seria um exemplo ideal de civilização clássica.

Mesmo assim, não se pode classificar essa obra como romance histórico, naquele sentido tradicional em que o escritor apenas se transforma num historiador liberado da rigidez das regras acadêmicas. Aqui a escritora se apropriou de um personagem real, cuja biografia continha os elementos que ela procurava para compor sua própria visão de mundo. A história real já estava pronta, ela só precisava selecionar os acontecimentos vividos pelo personagem, para construir uma unidade de sentido ficcional. E com isso, ela antecipou o que Paul Veyne diria algumas décadas mais tarde: a história é um romance verdadeiro.

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