Porque me afanam no meu país

Andam falando por aí que já existe uma máquina para ressuscitar mortos. Não sei se ela pode ser usada indiscriminadamente, quero dizer, também em defunto antigo, em estágio avançado da putrefação cadavérica. Seja como for, seria interessante evitar que algumas pessoas que viveram num passado mais distante tivessem a oportunidade de voltar. Não por discriminação temporal, preconceito cronológico ou algo assim, mas por um sentimento de caridade, para evitar que elas venham a sofrer de novo as agruras do mundo. Imagine-se, por exemplo, o conde Afonso Celso, que viveu na virada do século XIX para o XX, acordar do sono que parecia eterno e se deparar com os acontecimentos de hoje. Para quem não lembra, ou não sabe, o referido fidalgo foi uma alma muito pura, de sentimentos tão nobres quanto a sua estirpe, e além do mais, cultivava pendores literários. Foi ele o autor de uma obra, adjetivada humildemente de opúsculo, mas que, na verdade, era um hino de louvor à vida nacional. Publicada no ano de 1900, recebeu o título de Por que me ufano de meu país? Em algumas dezenas de páginas, o diletante literato catalogou e engrandeceu os vários motivos de orgulho que um indivíduo deve possuir por nascer e viver no Brasil. E não poupou qualificativos para enaltecer as qualidades superlativas desta terra tão abençoada.

O primeiro aspecto a ser descrito, com o mais desbragado sentimento de ufanismo, é a dimensão geográfica. Evidentemente, o conde, que tinha uma inteligência compatível com o país onde nasceu, sabia que extensão territorial não é garantia de desenvolvimento, seja econômico, espiritual, intelectual ou qualquer outro. Estava lá a África para justificar essa ressalva. Acontece que ao longo de espaço tão grandioso, encontrava-se uma floresta de dimensões míticas, cujo som é uma verdadeira sinfonia de pássaros das mais variadas espécies, dotados de uma beleza que só atesta o cuidado que teve o criador no momento em que se dedicou a esta parte do planeta. Essa imensa área vegetal é cortada por rios que rivalizavam com os oceanos em mistérios e riqueza de vida marinha.

Pobre conde! Se voltasse à vida hoje e encontrasse a floresta, melhor dizendo, o que resta dela, arrasada por madeireiras clandestinas e extrativismo ilegal. E a rede fluvial, destroçada por usinas hidrelétricas ou entupidas de lixo urbano.

Mas é claro que o Brasil não é apenas solo, árvore, água, pássaro e peixe. Tem também, e principalmente, o seu povo. Aqui, eu me sinto na obrigação de deixar um alerta, caso o insigne escriba se levante do leito sepulcral onde repousa desde 1938. Aquele sentimento de independência, elevada até a indisciplina, transformou-se hoje em falta de civilidade. Tanto ouviu o nosso povo elogios ao seu modo de improvisar a vida, que hoje ele pensa que não precisa seguir nenhuma regra social, e pode fazer e desfazer tudo do jeito que bem entender. Obedecer à lei, só se isso trouxer algum lucro, porque senão não vale a pena, dá muito trabalho, e o brasileiro vive na lei do menor esforço.

Quanto àquela hospitalidade de antanho, que dispensava até a existência de hotéis, as coisas mudaram um pouco. Hoje em dia, muitos brasileiros ainda encontram acesso às moradas alheias sem grande esforço, basta enfiar o pé na porta e entrar, com ou sem o consentimento do dono, que, aliás, quase nunca está presente. E tão agradecido fica o visitante que, ao sair, faz questão de deixar a casa bem limpa para quando o dono chegar, tanto que carrega consigo tudo o que puder.

Difícil alguém conseguir imaginar qual seria a reação do preclaro ufanista ao tentar encontrar aquela honradez no desempenho das funções públicas e particulares, pois naquele tempo, como bem salientou o distinto conde, os homens de estado costumavam deixar o poder mais pobres do que eram quando nele entraram.  Pensando bem, é melhor esquecer essa máquina milagrosa, ou pelo menos fazer uma seleção rigorosa de clientes antes de coloca-la em funcionamento. Seria muito triste uma pessoa     retornar à vida depois de tantos anos para se suicidar em seguida.

2 Comentários

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    Lilian Postado 18 de maio de 2016 19:22

    Caro,
    obrigada pelo texto, a fina ironia sempre faz-me rir. E se permite, vou copiar. Abraço.

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    Celso Afonso Postado 19 de maio de 2016 07:46

    Sim. Realmente uma grande coincidência.
    Coincide até no meu jeito de pensar.
    Excelente texto. Parabéns. Abraço.

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