Parusia à brasileira

Preferência política não é uma questão de mera opinião pessoal. Quando alguém dá um voto para eleger uma proposta de governo está avalizando algo que vai atingir todo mundo, não apenas o próprio eleitor, porque uma eleição não é um conflito pelo controle de patrimônios pessoais, e sim uma disputa pela administração de interesses da nação. Pendor político, portanto, depende de uma visão de mundo que prioriza o bem-estar da sociedade sobre as opções individuais. Entenda-se a cosmovisão como o corolário de uma práxis que subentende as vivências, os aprendizados, e a perspicácia na compreensão dos fenômenos sociais. É o ápice de uma formação intelectual consistente, do exercício do intelecto, mas também uma mentalidade humanista que desenvolve um potencial de empatia e busca no convívio social a interação entre os sujeitos e não entre objetos de consumo. Para uma mente polida pelas conquistas da civilização, sob os pontos de vista filosófico, histórico e antropológico, o humano sempre terá a primazia, um triunfo sobre a reificação dos indivíduos. Após essas meditações, pode-se até dizer que escolha política é uma questão de caráter, não no sentido moral, mas na acepção de uma estrutura psíquica, intelectual e afetiva.

É claro que essas divagações só valem para um sistema completamente idealizado, a ser praticado numa democracia onde os valores republicanos estejam em primeiro lugar nas intenções dos dirigentes, embora não sejam só os governantes que devam arcar com toda a responsabilidade. É necessário também que o eleitorado tenha incorporado o entendimento de que os cidadãos de uma comunidade vivem na maior parte de suas vidas compartilhando bens e espaços públicos, que, portanto, o usufruto dos bens é um direito coletivo, e os propósitos são comuns.

Não é esse o caso dos regimes atuais, sobretudo do Brasil, que, em verdade, nunca se constituiu como uma verdadeira República. No que diz respeito aos políticos, eles se apropriaram dos numerários públicos para benefícios de seus grupos privados. Fato deplorável, sem dúvida, mas o que interessa aqui é a reação do eleitor, cujo comportamento, na hora de votar, segue uma orientação personalista, em geral paternalista, que lembra as relações entre súditos e soberanos dos regimes monocráticos, onde a identidade do Senhor paira como uma divindade acima das consciências individuais

Nas eleições brasileiras deste ano de 2018, para presidente da república, esse fenômeno se mostrou com toda a clareza. Bolsonaro, o candidato vencedor, não apresentou, a rigor, nenhum projeto de governo que demonstrasse algum desvelo com os rumos do país. Concentrou a campanha numa promessa vazia de combate à corrupção no mesmo estilo de uma pregação religiosa, apregoada à exaustão para ser repetida infinitamente pelos fiéis e seguidores. O clima era de revanche, a sanha na punição dos pecados daqueles a quem considera os representantes do mal supremo: os políticos. Atualização evidente do mito do Anjo Vingador. Saliente-se que esse é um tema que tem hoje, no Brasil, um forte apelo emocional, muito mais forte que qualquer compreensão racional do problema. A roubalheira se transformou em alvo de uma cruzada moralista e a ideia de condenação das falcatruas exerce o fascínio de uma força mística sobre a multidão. Em resumo, é um tema que manipula ressentimentos e ódios recalcados de uma população que vê o país abandonado em seus serviços básicos, enquanto os políticos abastecem polpudas contas clandestinas em paraísos fiscais.

Mas o pior de tudo é a constatação de que essa falta de visão política não afeta só o lado direito do espectro social. Na esquerda também encontramos a manada entorpecida, adestrada por uma voz de comando, longe da qual se sente perdida e desesperada. Lula venceria facilmente a eleição, mas o candidato escolhido para seguir os projetos lulistas não ganhou. Esse é um detalhe importantíssimo para as estratégias de futuras campanhas, porque está claro que parte do eleitorado de Lula não tem a menor preocupação com proposições políticas, nem mesmo uma pequena noção de desígnios coletivos. Entre esse contingente, o voto em Lula é a manifestação de uma alma messiânica, a crença no salvador, no grande pai protetor que vai conduzir o povo a uma terra de bem-aventurança. Não há como se iludir com a presunção de que todo o voto em Lula é fruto de um processo de conscientização das camadas eternamente desvalidas da sociedade brasileira. Há ainda uma boa parte dessa gente que não adquiriu a capacidade de construir a sua própria vida e está de cabeça baixa, em pose de oração, à espera da Parusia, a segunda vinda do salvador à terra, para levar consigo os inocentes e punir os culpados. Mesmo que o pretenso salvador não passe de um ex-operário, cujo milagre mais extraordinário foi escapar de uma trajetória previsível por ter nascido em condições precárias, e cuja maior mensagem é de que não há um destino traçado por forças divinas inelutáveis, e que o primeiro passo para a salvação é livrar-se da ideia de um salvador. A verdadeira redenção é a resistência do povo lutando contra as forças opressoras e construindo seu próprio paraíso

foto: arquivo de internet

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