Outra América, pouco descoberta

A leitura é uma tentativa de estabelecer laços afetivos com o autor por meio de sua obra. O livro é o corpo físico onde a gente procura a alma de quem o escreveu, ou o universo que inspirou aquela criação. O sujeito se prepara como quem vai a um encontro amoroso, o coração pleno de bons sentimentos, com a esperança de uma nova e fascinante experiência.

O problema é que, às vezes, o leitor é um apaixonado ingênuo e idealista, que se entrega a essa aventura esperando muito mais do que o ser desejado pode oferecer. Assim aconteceu comigo ao ler O Anatomista, do argentino Federico Andahazi. Logo nas primeiras páginas já se percebe que, do ponto de vista literário, o livro não corresponde à expectativa criada pela importância do tema; a descrição das personagens não tem muita inspiração, e a tessitura dos fatos deixa muito a desejar em termos de criatividade. Está claro que o autor não se preocupou nem um pouco com aquilo que os estudiosos chamam de literalidade. Não bastasse isso, ainda nos brinda com episódios de conotação grotesca, em que uma menina, ainda de fraldas, brinca e se deleita de maneira nada infantil num excitante felatio, e depois, enfurecida por ter sido submetida à força a esse ato, arranca de uma dentada o membro flácido do velho que a explorava. Essa mesma criança, em cenas anteriores, protagoniza uma peripécia muito pouco convincente, ao desafiar sua cafetina ao dar-lhe o quinhão merecido.

Trata-se de um romance que aborda uma passagem na vida de Mateo Colombo, anatomista italiano que viveu em meados do século XVI, um homem em sintonia com a mentalidade do Renascimento; exercia a atividade médica, mas também se ocupava da pintura, e gostava de escrever. O próprio tema já remete à ideia de prazer. O foco da narrativa é a descoberta do órgão responsável pelo prazer sexual das mulheres, e só por isso já cria a esperança de conhecer um pouco mais sobre o instigante universo da anatomia. No lado científico, o personagem investigava as qualidades medicinais das ervas, que usava nas curas de pacientes. As pesquisas sobre essas poções também eram incentivadas pelo desejo de possuir uma chave que abrisse as portas e mostrasse o caminho mais procurado pelos homens renascentistas: o do coração das mulheres. Mas justamente como anatomista que ele iria descobrir algo mais importante do que a América de Cristóvão, o outro Colombo que entrou para a história dos descobrimentos, quando atravessou o Atlântico e se deparou com um novo continente. Em vez de se arriscar nos oceanos e enfrentar todos os perigos das águas, tanto os reais quanto os que a superstição produzia, Mateo Colombo preferiu o corpo feminino para lançar âncoras e explorar suas riquezas naturais. Pois foi lá, nas partes mais íntimas de uma dama desfalecida que ele desvendou uma protuberância anatômica que, de início, julgou que fosse um pequeno membro masculino. Estaria ele à frente de um ser hermafrodita? Começou então a manuseá-lo e constatou que a doente reagia positivamente com contorções pelo corpo, os músculos retesados e, ao final, uma explosão de prazer que nem ele tinha visto, nem ela havia desfrutado. Mais ainda, ao notar que a paciente recuperava as forças, prescreveu sessões diárias de carícias, até que a enferma se apresentou completamente restabelecida. Mateo Colombo entendeu nesse momento que não se tratava de nenhuma deformação, nenhuma manifestação demoníaca, como poderiam acusar os crentes quinhentistas. Era tão somente um detalhe da anatomia feminina, até então desconhecido, que, ao ser devidamente manipulado, leva a mulher ao paroxismo do gozo. Ainda não tinha um nome a dar a tão valioso tesouro, então, chamou de Amor Veneris, pois acreditou que ali se concentrava toda a capacidade de amor feminino. Agora ele tinha, como o outro Colombo, a sua América, que o tornaria imortal. E aqui o autor faz uma boa aproximação entre as duas descobertas, pois ambas significavam grandes possibilidades para quem se propusesse a conhecer novos mundos.

Mas antes de ganhar a imortalidade, Mateo Colombo ganhou uma cela, uma espécie de prisão domiciliar na universidade de Pádua onde lecionava, enquanto aguardava o julgamento de uma comissão da Santa Inquisição. As práticas de dissecação de cadáveres e ensaios com mulheres vivas já haviam despertado a suspeita dos doutores da Igreja, antes mesmo de anunciar essa proeminência por onde, segundo os nobres prelados, o demônio se apossaria do corpo da mulher.

É nessa perspectiva que aparece um dos aspectos mais interessantes do livro: a confusão que se fazia, nessa época, entre ciência e religião, com a total submissão da primeira às superstições da segunda. E é ainda nesse quesito que o livro é bem atual, apesar de ter sido publicado há mais de vinte anos, pois reflete bem esse estágio mental de hoje, que trouxe de volta algumas crenças há muito superadas, onde a ciência e a lógica têm sido relegadas a planos secundários, abaixo dos mais bizarros delírios, e o conhecimento é colocado na condição de mera opinião pessoal. Dá para imaginar a resistência que o anatomista enfrentou ao afirmar a naturalidade do prazer sexual feminino num tempo em que um simples olhar menos submisso já jogava uma mulher na fogueira, sob a acusação de bruxaria. No romance de Andahazi, Mateo Colombo padece por vários dias a angústia da certeza de ser jogado nas chamas do fanatismo religioso por ter proclamado a descoberta de sua América, muito mais rica. Escapou por pouco.

Não sei quando essa maravilhosa saliência recebeu o atual nome de clitóris, o que sei é que ainda hoje as mulheres se queixam que muitos homens, seja por falta de habilidade anatômica, seja por medo de arder em algum incêndio imaginário, mesmo sabendo de sua existência, nunca conseguem encontrá-lo.

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