Os mensageiros secretos

Há muitos anos eu desconfio que os livros são mensageiros secretos. Tão secretos que só eles sabem o momento em que devem aparecer para nos dar a mensagem. Eu, como todo bibliófilo, tenho mais livros do que o tempo disponível me permite ler. E eles vão ficando ali na bancada, empilhados. E a pilha vai crescendo. Já aconteceu, por exemplo, de me faltar inspiração para escrever alguma coisa e resolvi dar uma arrumada na bagunça. Comecei a separar os volumes por assunto, prioridade, coisas assim. Lá pelas tantas um se desequilibrou na prateleira e me caiu por cima.  Olhei o título: Os Segredos da Ficção, de Raimundo Carrero. Antigamente, eu não percebia esses chamados, nem dava bola quando um livro se atirava aos meus pés, saltava da estante. Achava que era tudo só por brincadeira. Mas depois, fui aprendendo a dar atenção quando um deles me chama. No caso daquele, até tentei deixá-lo num canto, e continuar a arrumação. Mas ele insistiu, se atirou em cima da mesa, e caiu aberto, com o sumário virado pra cima.  E lá estava, em caracteres grandes, o nome da primeira parte: O processo criador. Achei que não era justo ignorar um aviso tão importante. E esse exemplo não foi o único. Normalmente, cada livro que leio é uma projeção dos meus pensamentos ou uma resposta aos meus anseios. Mas essa identificação só se manifesta durante o processo de assimilação do conteúdo, o que torna a leitura ainda mais fascinante. Então, se estabelece um diálogo intenso com o livro, pois eu o escuto, aceito, argumento, comparo o que ele me diz com a situação que estou vivendo. Ele, por sua vez, me ouve, dá conselhos, aponta caminhos. Esses são os livros lidos da primeira à última frase, sem pular uma única vírgula.

Mas, há também aqueles livros que não me permitem decifrar facilmente o enunciado. Chegam cheios de reticências, ficam na volta, como que me observando, ou me preparando para dar a notícia. Acho que percebem que não estou preparado, e voltam para o lugar de onde saíram. Com esses, não adianta tentar entabular conversa. Eles escondem o jogo, não revelam nenhum segredo. Daí, o melhor a fazer é não insistir, para não causar atrito desnecessário.

Durante muito tempo eu tive enorme dificuldade de abandonar um livro depois de começar a leitura. Bastava percorrer a primeira linha, pronto, não desistia da história enquanto não chegasse ao último parágrafo. Por conta disso, já me arrastei por páginas e páginas sem nenhum entusiasmo. É uma sensação parecida com aquela de estar ao lado de uma pessoa estranha que gosta de ser sociável. O interlocutor faz um comentário banal, nos sentimos na obrigação de retribuir gentileza, respondemos algo do mesmo gênero. Não significa que essa pessoa seja estúpida, ignorante ou coisa assim. Pode muito bem ser uma criatura de imensa sensibilidade e arguta inteligência. Só que não estamos na mesma sintonia. E a comunicação não deslancha.

Na minha opinião, esses livros enigmáticos são assim. Não significa que sejam ruins, mal escritos, ou vazios. Apenas bateram em minha porta no momento em que eu não tenho como entender os sinais que me dão. E um grande aprendizado que adquiri com o tempo é perceber quando um livro, ou uma pessoa, não vai me dizer nada importante. Numa situação dessas, a gente se vale da liberdade de escolha: continuar o palavreado displicente, sem criar grandes expectativas para não acumular desilusões; ou apelar para a imaginação e inventar um pretexto educado para pôr ponto final ao bate-papo.

No caso dos livros, já não me sinto culpado por pedir que voltem para a prateleira. Com alguns deles creio inclusive que foi melhor assim. O primeiro foi Jangada de Pedra, de José Saramago. Não consegui fazer parte daquela embarcação que flutuava por oceanos já várias vezes navegados. O Passado, de Alan Pauls, também não me trouxe nenhum alento ao presente e nenhuma esperança para o futuro. Resultado: decidi contemporizar e dar um tempo. Depois, apaguei as Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Não me convenci da honestidade de tantas reminiscências.  Talvez pela seriedade da fala, a sutileza das idéias, o lirismo de algumas imagens. Mas o mais provável é que a minha atenção tenha se voltado para o espírito galhofeiro, irônico e debochado de Gargântua e Pantagruel, de Rabelais. Esse sim chegou sorrateiro, destronou o poderoso imperador, e se instalou na cabeceira da minha cama. E todas as noites, antes que eu pegue no sono, ele me atiça a curiosidade com uma anedota sobre algum monge pervertido, ou as fanfarronadas de algum poderoso medieval. E não é por acaso, pois o meu atual estado de espírito se identifica mais com a ironia escrachada que com as retóricas sentimentalistas.

Certa vez, entrei numa livraria, e um livro novo saltou no balcão da entrada, e as letras amarelas da capa começaram a dançar na minha frente. Fui conferir, e o que encontrei não podia ser mais instigante: Não contem com o fim do livro, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Levei pra casa e bastou abrir a página do índice para sentir a necessidade urgente de ler essa obra. É que um dos capítulos se chama “Livros que fazem de tudo para cair nas nossas mãos”. Esse, obviamente, era um deles.

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