O JUIZ E O OGRO

Era uma vez um reino muito distante, que foi invadido por seres malvados, ogros, ladrões, prevaricadores, só gente atolada na lama do pecado. Essa legião de pecadores assolava o reino e causava muita indignação nas pessoas de bem, entre elas um juiz, homem muito correto, a alma toda voltada às boas ações, à caridade, à justiça, só atitudes inspiradas por um coração puro, imune às tentações do demônio. Um caráter inquebrantável como esse, que só andava pelo caminho do bem, naturalmente despertava o ódio daqueles celerados, e nem sempre ele podia fazer valer a justiça, o que o deixava, por vezes, deprimido e taciturno. Por isso, ele só se vestia de preto, como se estivesse de luto pelas almas boas. Um dia, passeando por uma floresta muito fechada, onde a vegetação formava uma cortina que barrava até o sol do meio-dia, encontrou uma caverna. Como estava cansado, decidiu se deitar ali para se restabelecer. Mal pegou no sono e ouviu uma voz que dizia “levanta-te, tu és o meu escolhido para acabar com a corrupção nesse país, vais derrotar todos os teus inimigos e abrirás caminho para o novo salvador que enviarei ao teu povo.

Quando acordou, não sabia direito se aquilo era um sonho ou uma mensagem divina, mas, como as almas santas costumam acreditar que foram predestinadas a grandes feitos, concluiu que só podia ser a voz de um anjo que desceu à terra para enviá-lo a uma missão. Quando foi se levantar, apoiou a mão no chão, sentiu algo, olhou, era uma constituição do reino. Ele sabia que não era dele, pois não trouxera nada. Folheou algumas páginas e encontrou várias passagens marcadas em tinta vermelha, e numa revelação concluiu que se tratava de artigos, parágrafos e incisos que ele não precisava seguir porque dificultaria muito o bom resultado no combate ao crime. Saiu da caverna e se empenhou com todas as suas forças na tentativa de derrotar o mal da corrupção e instaurar no reino o bom caminho, a ser trilhado pelas pessoas honestas.

Acontece que nesse reino havia também um ogro muito cruel, que assustava todo mundo. Ninguém sabia direito onde ele se escondia, mas tinha gente que jurava que, no antro que ele dividia com outros seres da mesma natureza diabólica, ele tomava enormes bebedeiras e praticava todo o tipo de heresias que um bom cristão possa conceber. Muita gente não tinha a menor dúvida de que se tratava se um velhaco assassino. O pior de tudo, esse ser que muitos desprezavam com fúria obsessiva, ainda alimentava a esperança de se tornar rei. Era seguido por uma multidão de devassos que nem ele, que sonhavam em implantar o reinado da corrupção e da perversidade. Por isso ele era também odiado por muita gente.

Então, o juiz considerou que deveria começar por esse ser das sombras para trazer ao povo a luz celestial e a bem-aventurança. Lançou mão dos mais variados dispositivos jurídicos disponíveis para persegui-lo, carregava sempre no bolso do paletó preto aquela constituição achada na caverna, e sempre que havia uma folga, decorava os artigos marcados, para poder ignorá-los com mais segurança. De fato, havia no livro da lei muitas recomendações desnecessárias, que atrapalhavam o bom andamento de uma Ação Criminal. Por exemplo, ouvir a defesa do réu. Se todo mundo sabia que o réu era um assassino deplorável, o juiz não via necessidade de perder tempo com ritos formais, pois evidente que a defesa ia trazer só mentiras e tentar influenciar a sentença. Outra coisa que parecia improducente era a divisão do julgamento em instâncias. A pessoa que investiga naturalmente conhece melhor a natureza do criminoso, então, ele próprio se encarregou da investigação, ajudando os investigadores na consecução das provas e na elaboração da denúncia. Assim a condenação seria bem mais consistente.

Naturalmente essa estratégia causou grande revolta entre os seguidores do ogro, que viram suas falcatruas prestes a serem desmascaradas. Eles alegavam que o processo devia seguir todos os artigos contemplados na lei, mas o juiz, por ter recebido aquele exemplar das mãos do anjo, sentia-se ungido pelas forças do bem, e autorizado a fazer o que lhe parecesse certo. A inteligência do juiz emanava do espírito do Senhor, ele jamais cometeria um erro. Continuou impávido na luta ferrenha contra o mal.

A perseguição foi tão forte que virou notícia. E o juiz, então solitário e discreto, que vivia no anonimato, virou uma grande celebridade da noite para o dia. Tudo o que o juiz falava dava eco na mídia, por isso foi chamado de juizeco. Mas o ogro também tinha amigos influentes, formou um exército forte e a batalha foi violenta.

Aí apareceu o chefe de uma gangue de saltimbancos que começou a fazer grandes escaramuças em todas as aldeias do reino por onde passava. Falava mal do ogro, dizia que todos os problemas do reino eram culpa daquele ser abominável. Com isso, ele conquistou a simpatia daquela gente que tinha muito medo do ogro. De fato, uma grande parcela dos súditos acreditava que o ogro ia invadir as casas deles, tirar tudo o que eles suaram para adquirir, tais como…por exemplo…. Bem, alguns, na verdade, não tinham nada, mas se acostumaram a ouvir que o ogro ia tirar tudo deles, então passaram a odiá-lo também. Esse líder da trupe era muito temente a Deus e desde criança, quando brincava de soldadinho de chumbo, alimentava a fantasia de enfeitar a cabeça com os louros da coroa, então, ele procurou o juizeco e se ofereceu para ajudar a prender o ogro sanguinário, pois aquele monstro solto, também ia lutar pela coroa, o que tornaria as coisas bem mais difíceis. Em caso de sucesso, assim que o soldadinho assumisse o trono, o juizeco ganharia uma posição de destaque no combate à corrupção. Então, se uniram com o exército do rei atual, que também morria de medo do monstrengo, e prenderam o ogro; o líder dos saltimbancos virou rei e o juizeco se tornou uma grande autoridade.

Mas aí, os seguidores do ogro, só de inveja, passaram a dizer que tinha que prender também os saltimbancos amigos do novo rei, o que causou uma certa confusão na cabeça da autoridade suprema da justiça. Nesse meio tempo, os saltimbancos pediram perdão pelos pecados de antes e se confessaram arrependidos, o ex-juiz lembrou daquela constituição toda marcada de vermelho e disse aos saltimbancos: ‘ide em paz, vós vos arrependeis e sereis perdoados”

E assim todos foram felizes para sempre. A constituição continua bem guardada e estudada, para se saber as partes que se pode pular. O importante é que o povo esteja feliz e em paz, e siga seu caminho, sempre iluminado pela esperança e a fé em Deus.

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