O direito da esquerda

Este ano voltei ao Fronteiras do Pensamento, atraído, sobretudo, pela lista dos convidados. O primeiro deles, Mario Vargas Llosa, atração no evento de abertura da edição de 2016. O tema da conferência foi sua trajetória política, que começou na juventude, com uma militância comunista, com direito a algumas viagens a Cuba, o deslumbramento com o regime de Fidel Castro, e o posterior desencanto, marcado, principalmente com as denúncias dos crimes praticados pelo regime soviético, até chegar à maturidade, quando aderiu completamente à ideologia liberal, passando também por uma candidatura à presidência da república do Peru.

Todo esse percurso já era conhecido pelos fãs do autor, mas para aquelas pessoas que se interessam por uma dimensão mais ampla do fenômeno literário, suas relações com o contexto sociopolítico dos autores, esperava-se um pouco mais de reflexão e análise das variáveis políticas que condicionam a sociedade nos povos latino-americanos. E justamente nesse ponto é que o grande escritor logrou seus ouvintes mais exigentes. Suas concepções de Esquerda e Direita não avançaram uma única linha além das generalizações do senso comum, difundidas pela mídia ou pela propaganda ideológica. Como qualquer analfabeto político, Vargas Llosa confunde a proposta socialista e o espírito de Esquerda com os regimes políticos que se instalaram historicamente apoiados no discurso de Esquerda, sem perceber que autojustificação não significa exatamente autenticidade na execução. Se os regimes que se instalaram usando o discurso de Esquerda se desvirtuaram pelo caminho, isso só compromete os próprios regimes e não os princípios de Esquerda. Ser de Esquerda é muito mais do que se declarar a favor dos pobres e reivindicar redistribuição de renda.  É uma convicção de que a vida em sociedade não é conduzida exclusivamente pelo mercado, e que as pessoas não são mercadorias postas à venda e expostas para o consumo de quem pode pagar por elas. Esquerdista é um indivíduo que acredita que a prosperidade material é importante para atender demandas da existência humana digna de uma civilização, mas a produção e circulação de valores simbólicos, incluindo bens culturais, também é de vital importância. Portanto, se um regime qualquer, mesmo com um programa que inclua propósitos de Esquerda, não atendeu aos princípios básicos da dignidade humana, ele nunca foi de esquerda, e não passou de enganação. .

Nunca acreditei muito nesse discurso de ex-esquerdista arrependido, como se apresentou o grande astro da literatura-latino americana. No Brasil de hoje, temos um terreno fértil para esse tipo de ladainha, um contingente bem expressivo que arrota ressentimento de quem acreditou nas promessas de Esquerda e se sentiu ludibriado com a concretização. Nada mais falacioso. Trata-se, na verdade, de um segmento da classe média, dependente da economia de mercado, cujos únicos referenciais são o lucro financeiro e o poder de consumo. Essa parte da sociedade, no fim dos anos noventa, se viu num beco sem saída por ter apoiado o projeto neoliberal do PSDB e não teve suas necessidades atendidas, pois o governo de então estava destinado a atender apenas a classe dominante. Foi então que essa parcela migrou em massa para a alternativa petista. Quando o governo Lula apresentou seu programa de atendimento prioritário das demandas populares, a classe média, mais uma vez colocada em segundo plano, como aliás sempre esteve na estrutura social brasileira, saltou enraivecida, aos gritos de desespero e pânico por se ver ameaçada na sua condição de única detentora do poder de consumo de supérfluos. As denúncias de corrupção e a total alienação da dimensão histórica dos problemas brasileiros foram motivos suficientes para esquecer o passado e pedir a volta dos antigos traidores. Para que o retorno não fosse tão humilhante, recorreu-se a um passado de convicções esquerdistas, sustentadas por um equivoco ingênuo, por um romantismo juvenil.

Acontece que quem concebe a ideologia de esquerda como um sentimento de exaltação da dignidade humana e sonha com um sistema social que considere mais as realizações do espirito humano do que a das máquinas da indústria, esse nunca deixou de ser de esquerda. Um esquerdista autêntico, ao ver suas expectativas frustradas, vai fazer uma reavaliação das estratégias de conquista de poder e vai buscar novas alternativas de esquerda, jamais se entregar ao discurso fantasioso do paraíso neoliberal, como fez o grande escritor peruano. As propostas de democracia liberal insinuadas por Vargas Llosa na palestra são tão idealistas quanto o seu socialismo de juventude, pois ignoram, ou escamoteiam, os verdadeiros agentes que controlam o poder, ou seja, o dinheiro e a busca pelo lucro desmedido, e não essas bobagens puramente retóricas de liberdade, bem comum, marcados por uma impessoalidade que só existe nos discursos oficiais.

Enfim, para ser de esquerda e não cair nas armadilhas do discurso direitista e rancoroso é necessário romper as fronteiras do pensamento idealista  e acreditar num projeto político onde o humano seja mais importante que a mercadoria. É, também, construir outra narrativa sem esse complexo de vítima dos que não tiveram convicções fortes o suficiente para continuar. Isso, ao que parece, nem alguns dos grandes escritores conseguem fazer.

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