Mil e uma noites de ponderação

Umberto Eco tinha razão, a burrice é um grande instigante para reflexões. Tanto é que não consegui me limitar ao texto anterior e voltei ao assunto. Para quem, como eu, gosta de tentar entender o sentido das coisas ao redor não pode desperdiçar tantas oportunidades de exercício do pensamento, porque o Brasil atual é pródigo na oferta de alvos para as atividades do intelecto. Para qualquer lado que se olhe encontra-se uma infinidade de tolices repetidas sem a mínima avaliação racional, sem uma mísera tentativa de análise crítica. Jornais, televisão, internet, tudo desorientado na mais completa falta de bom senso, seja estético, seja ético. Já nem falo na profundidade do raciocínio porque nesse ponto a pobreza é uma característica mundial.

Há poucos dias saiu a lista dos livros mais vendidos do ano de 2013 no Brasil. É um caso tão escandaloso que fico até constrangido de repetir aqui essa comprovação da nossa indigência cultural. Mesmo sabendo dos altos índices de analfabetismo funcional do povo brasileiro, esse tipo de notícia ainda surpreende. E não devia causar nenhum espanto. Basta ligar a televisão ou acessar a internet para ver os exemplos mais aberrantes dessa carência de discernimento.

A noção de inteligência está restrita a uma espécie de sintonia entre emissor e ouvinte. Mais ou menos assim: se o locutor fala o mesmo que eu penso então ele é muito inteligente. Se fala o contrário, então ele é burro. Descartada a possibilidade de discutir o tema com um pouco de imparcialidade.  Na época das singularidades pessoais o importante é ostentar opinião, não importa que desprovida de fundamento. O eixo principal de um diálogo hoje em dia parece ser algo do tipo: pode ser uma idiotice, mas é a minha opinião e eu tenho o direito de falar o que penso.

É por isso que se criam várias confusões na mídia, onde pululam os maiores exemplos de deturpação das ideias. Vejamos alguns exemplos hipotéticos. Um sujeito mediano, sem muitos dotes espirituais, consegue frequentar um curso de Filosofia e, depois de concluir a Faculdade, passa a escrever uma coluna semanal para um grande jornal. Pronto, já é o suficiente para definir a si próprio como filósofo, mesmo que suas sandices não passem de clichês do senso comum recheados com o mais retrógrado moralismo escondido no jargão do filosofês. Não bastasse isso, ele ainda confunde opinião pessoal com reflexão filosófica, perspectiva limitada com princípios éticos, e postura autoritária com coragem. E para mostrar que é corajoso e muito crítico, vai se voltar contra o politicamente correto, o outro lado da falência da razão, porque esse é um ponto que dá audiência garantida.

Agora imaginemos uma versão feminina desse tipo. Uma mocinha com boa aparência, saída não se sabe de onde, aparece um dia numa estação de TV gritando contra as estripulias do carnaval.  Num discurso com forte pendor moralista e indisfarçadamente reacionário, ela enumera um sem-número de obviedades sobre o maior espetáculo da terra. Até aí nada demais, pois em festas populares no país da sacanagem há motivos de sobre para censuras e indignações. O problema é que a futura nova celebridade entoa sua ladainha como se fosse uma grande descoberta, e ela, a portadora da luz da sabedoria que vai desbravar as trevas da cegueira mental e revelar o novo horizonte para onde os desprotegidos e oprimidos pela tirania devem olhar daí pra frente. Será o suficiente para essa visionária das arábias se tornar a rainha dos altinhos indignados com o vazio moral dos políticos e assemelhados. A partir daí, ela assumirá como âncora de um telejornal noturno e passará mais de mil e uma noites arrotando os mais incríveis desatinos como se fossem revelações surpreendentes.

Outro aspecto da nossa deficiência intelectual é essa visão personalista, que avalia uma sentença não pelos seus fundamentos lógicos, mas pela pessoa que a proferiu. Se o tagarela da vez for uma celebridade dessas que se tornaram ícones na sociedade, então uma asneira desprezível vira um mantra digno de hipnotizar multidões. Não faz muito, vagou pelo Facebook um vídeo com o consagrado Chico Buarque falando sobre racismo. A tal peça midiática circulou tanto e com tantos elogios e recomendações para compartilhar que um dia cedi à curiosidade e fui conferir. E o que diz o nosso tão celebrado cantor e escritor sobre a pior chaga da história do Brasil? Nada. Sim, absolutamente nada de novo nem relevante. Na verdade, ele gagueja meia dúzia de frases, ás vezes até com aparente desinteresse pela entrevista. Daí, a conclusão é óbvia: ninguém ouviu ou avaliou as declarações. Bastou aparecer o rosto maquiado e bem-apessoado de quem já teve cara de príncipe encantado para uma multidão se ajoelhar e prestar reverência sem dar a mínima importância ao que ele falou.

Quando penso nessas calamidades, me ponho a refletir sobre a viabilidade de tentar escrever algo que valorize o conteúdo, com propósito de apresentar um mote para um debate. Por vezes, só por pirraça, brinco com a hipótese de entrar na histeria geral e empunhar uma bandeira, não importa qual, corrupção, mensalão, educação, vinte centavos, uma bobagem ordinária que me identifique como portador de uma notícia urgente.  Mas quando ponho a cabeça no travesseiro para descansar é que tenho os insights mais sensatos e concluo sempre que a ponderação é mais rica, me faz dormir mais tranquilo e acordar de manhã mais inspirado para tentar captar as nuances do mundo que estão além das conclusões definitivas.

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