Intelectualmente correto

Refletir sobre o mundo exige alguns cuidados e uma atenção especial à própria maneira de pensar. Algumas décadas atrás, como consequência do multiculturalismo, surgiu o politicamente correto, uma estratégia de repúdio à intolerância com as vivências diferentes, uma mentalidade que veio complementar as diretrizes dos direitos humanos.

Naturalmente, como acontece com todos os fenômenos sociais espontâneos de grandes dimensões, ocorreram alguns exageros, não exatamente pela ideia em si, mas por obra de pessoas que, mesmo com a nobreza dos propósitos, não compreendem as dimensões mais profundas das coisas. Sem falar nos moralismos travestidos de boas intenções. Por exemplo, negar o uso da palavra negro para identificar uma pessoa de origem africana, sob o argumento de que a menção à cor da pele pode ser ofensiva, é uma bobagem que demonstra mais o racismo do que preocupação com a sensibilidade alheia. O vocábulo está no dicionário, exatamente com esse significado “diz-se de ou indivíduo de cor negra”.

Mas esse é um aspecto mais imediato e superficial da questão. Seguimos adiante e vemos que o problema do politicamente correto não se resume a isso, e que o reconhecimento das idiossincrasias do vizinho não é sempre um excesso de cuidado. Veja-se, por exemplo, a questão das piadas, sobretudo as que abordam as diferenças étnicas e a diversidade sexual. O primeiro ponto a ressaltar é que o humor, notadamente esse apresentado como entretenimento corriqueiro na televisão, atua nas estruturas de pensamento consolidadas, alicerçadas nos valores morais. Nesse caso, o humor que se limita a recorrer a um repertório de tipos, sem uma visão crítica, desempenha o papel de perpetuar essas estruturas na mediada em que as piadas, na maioria dos casos, expõem a diferença sempre a situações ridículas, reforçando estereótipos e alimentando os preconceitos.

Há ainda a responsabilidade pedagógica. Manifestações de racismo, homofobia, entre outras intolerâncias, quando acontecem entre adultos de convicções já formadas, podem causar pouco estrago, mas quando atingem crianças em estágio de formação de valores, podem ser um incentivo à perpetuação da discriminação.

Seguimos em frente e constatamos que os ataques ao politicamente correto têm motivações mais profundas. Como já foi mencionado, as táticas de refinamento do discurso seguiram as políticas de aceitação das diversidades culturais. Pois é exatamente aí que se dá a tensão entre a hipérbole simplória e o conservadorismo escamoteado. Condenar o discurso é obviamente uma estratégia disfarçada de atacar o avanço da mentalidade social mais progressista. Os conservadores e moralistas, que julgam seu próprio universo mental como único referencial possível para condutas humanas, não aceitam com facilidade a existência de outros parâmetros com os quais as pessoas possam se guiar. Incapazes de combater abertamente uma pauta social mais arrojada, os moralistas se voltam contra a retórica que a valoriza e a legitima.

Diante dessa realidade, o caminho mais viável deveria ser o intelectualmente correto, sem a simplificação dos ingênuos bem intencionados, mas sem dar espaço para que a reação conservadora recupere velhas maneiras de pensar e de agir.

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