Ingenuidade abusiva

Há uma expressão latina que traduz um princípio bem sábio: Abusus non tollit usum, que em linguagem vernácula significa O ABUSO NÃO IMPEDE O USO. Para ilustrar esse pensamento, pode-se trazer à baila a demonização que se faz, já há um bom tempo, da televisão e, mais recentemente, da internet. Ora, todos os avanços da tecnologia devem ser aplaudidos, e as novas invenções são maravilhosas por si mesmas. Se alguém fez uso inadequado delas, a culpa está no usuário, não na técnica. É mais inteligente corrigir os desvios do hábito do que jogar fora um monte de possibilidades positivas por causa de um erro de execução. Sem falar no retrocesso que isso pode acarretar.

Mas o assunto aqui é política, e não tecnologia. Nosso atual presidente se elegeu graças a um equívoco desse tipo. O discurso mais incisivo na campanha foi o ataque ao que ele chama de velha política, que consiste segundo ele, de conchavos entre o Executivo e o Legislativo para manter a governabilidade. Esse sistema seria responsável por todo o caudal de corrupção que corrói as bases da sociedade brasileira. E prometia: “vamos acabar com isso daí, tá ok?”. Tal era a entonação da promessa que o candidato conquistou uma legião de apoiadores que lhe garantiram a vitória no segundo turno.

Não custa nada investigar um pouco a índole do atual eleitorado brasileiro. Há uma parcela bem expressiva da população brasileira tomada de ódio pela classe política e pelas ancestrais falcatruas daqueles que deveriam estar zelando pelas riquezas públicas do país e em vez de as aplicarem para o bem comum tratam apenas de encher os próprios bolsos e atender aos interesses privados. Indignação muito legítima, por sinal. Mas há outro aspecto significativo na caracterização desse votante que é a simplicidade de raciocínio. Seja por falta de conhecimento objetivo sobre a matéria, seja pela dificuldade de uma abordagem mais racional para ver o fenômeno nas dimensões que ele tem, histórica, sociológica, política, certo é que o cidadão médio se deixa atingir pelos fatos de uma maneira puramente emocional, no ângulo limitado pela sua própria experiência individual. Como o alcance da maioria das pessoas leigas não vai além das atribulações do cotidiano, é comum que se encare a administração de um país como se fosse o provimento de uma família, onde o chefe, com cara de homem sério e pose de mau, chega no momento oportuno para acabar com as desavenças entre os fâmulos e restabelecer a ordem e a paz. Nesse sistema o presidente da república assume facilmente o papel de um pai protetor. E foi nesse contexto que o ex-capitão apareceu extravasando bravatas, ameaçando prender e matar qualquer um que saísse da linha traçada pelo catecismo do bom comportamento. O povo aplaudiu desvairado na crença de que a balbúrdia ia acabar.

O problema, que parece ter sido ignorado tanto pelo postulante quanto por seus eleitores, é que os governos se formam apoiados em princípios de natureza filosófica, política, etc. e o caso é que o Brasil, ainda que muito mais nos documentos oficiais do que na prática, é uma República Democrática, cuja base de apoio é a harmonia dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou seja, para que as coisas funcionem de uma maneira minimamente aceitável, essas três instâncias de poder devem permanecer em constante diálogo, o que significa acordos, negociações, trocas de vários tipos. É muito ingênuo alimentar a ilusão de que o presidente possa governar sozinho e impor um projeto unilateralmente, sem discutir com o Congresso. Pelo menos numa Democracia. E aí é que está o busílis. A singeleza intelectual e a inaptidão do seguidor de Bolsonaro para entender as questões mais complexas levam-no a aplanar tudo ao nível da vontade pessoal, uma concepção infantilizada e muito moralista na qual, se a opinião é boa deve ser aceita por todos, assim como as crianças acreditam que todo mundo gosta do que elas mesmas gostam. Por outro lado, essa mentalidade implica uma predisposição ao fascismo, ao autoritarismo, aquela ditadura que os infantes exercem sobre os adultos porque não aprenderam ainda o poder da reciprocidade.

Agora estamos vivendo o momento de encarar a realidade: o presidente está reconhecendo publicamente os contratempos de governar sem negociar com o Congresso. É claro que esse negociar, além das conotações éticas louváveis, vem também conspurcado por significados espúrios e muito pouco recomendados para uma verdadeira República democrática. Mas, seguindo o ensinamento dos antigos romanos, traduzido na frase lá do começo, é necessário aprimorar a técnica da oratória em vez de regredir ao estágio primitivo da força bruta.

Resta esperar pra ver se os bolsonaristas vão aprender a lição e procurar, no próximo pleito, alguém com propostas mais honestas e mais realistas ou vão sair à procura de outro salvador que prometa novos milagres, tão maravilhosos quanto impossíveis de realizar. Espera-se que optem pelo primeiro caminho, pois o segundo seria abuso de ingenuidade.

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