Quem estiver sequioso por se abeberar em estudos teóricos de enologia vai encasquetar, volta e meia, com a tal harmonização, o casamento ideal entre a bebida e a comida. É uma coisa simples, que tem como pressuposto a idéia de que vinho não é para encher a cara até cair de porre, e sim para degustar. Portanto, é bom alvitre ter alguma comidinha para forrar o estômago antes de beber. Ainda mais, quando o ritual da degustação se dá entre pessoas de certo refinamento social, ocasião em que se deve evitar os riscos de um vexame.

A Natureza produz aos pares, cada coisa tem um correspondente que lhe complementa a existência. Com vinho e comida não haveria de ser diferente. Nasceram um para o outro. Mas, assim como não basta haver um homem e uma mulher para que se forme um casal harmonioso, também não é suficiente uma garrafa de vinho e um prato de comida para que se tenha uma refeição apreciável. Os vinhos e as comidas também possuem suas idiossincrasias na hora de ceder aos apelos da sedução. Por isso, é importante que se conheça o potencial de atração de cada um na hora de estabelecer a harmonia suprema, para que se faça a consubstanciação desejada. E haja manual e tabelas para orientar o pobre consumidor a criar a união ideal!

O que os autores de manuais ignoram é a existência de algumas condições básicas para conseguir a combinação exata entre comida e bebida. Em primeiro lugar, seria proveitoso convencer o candidato a gourmet de que essa busca de harmonia é exigência de um paladar sofisticado. E isso quando se tratar de um glutão com pretensões de ser sofisticado, pois para a maioria das pessoas, qualquer líquido palatável só serve para matar a sede, e o único segredo que existe é engolir gelado. Em segundo lugar, condição fundamental é o comilão ter dinheiro no bolso pra pagar a conta no final do banquete, pois saber que existe um vinho que combina melhor com uma comida e não ter como comprar nem um nem outro é como o padre que sabe explicar aos nubentes como deve ser a vida sexual, mas ele mesmo está impedido de testar os próprios conhecimentos.  E terceiro lugar, indispensável que se esteja no lugar certo para conseguir os dois elementos básicos da harmonia perfeita.

E aí é que surgem os problemas. Imagine-se a seguinte situação. Um homem chega em casa cansado, disposto a relaxar com uns goles de vinho. Na prateleira improvisada como adega pregada na parede tem um único exemplar de um chardonnay australiano. Ele coloca na geladeira enquanto toma um banho. Volta alguns minutos depois, asseado, refeito, começa a bebericar. Lá pelo segundo copo ele se dá conta de que ainda anão comeu nada, e como se sabe, não é recomendável beber de estômago vazio. Então, o enófilo desprevenido vai à geladeira e só encontra uma picanha assada, sobra do churrasco do fim de semana. Nessas horas, a imaginação é fundamental. E uma certa pretensão científica também evita constrangimentos inúteis. Num caso como esse, por exemplo, uma possível saída do impasse é o beberrão inventar para si próprio que está testando harmonizações estranhas, um novo método pedagógico para educar papilas gustativas. Se não houver ninguém por perto para argumentar que as papilas já nasceram educadas e quem não tem educação é ele, a estratégia pode até funcionar bem. Por isso que, por via das dúvidas, sempre é bom e aconselhável ter por perto um guia de harmonizações.

E isso me lembrou de um amigo, amante dos vinhos e das letras, que certa vez, numa noite gelada de junho, após uma garrafa de vinho, pediu uma cerveja bem gelada. Segundo ele, para tirar da boca o efeito da adstringência criado pelos taninos. É bem verdade que o líquido tânico era um suco de uva com álcool, desses que compõem a carta dos restaurantes ½ estrela de Porto Alegre. Mesmo assim, acho que ele exagerou.

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