A TRAGÉDIA DOS FARSANTES

A idolatria pode conter algumas arapucas, nos casos em que o fã se entrega à veneração sem conhecer todo o trabalho do ídolo. Enquanto permanece nesse estado de semiconsciência, o idílio pode durar sem reveses, desde que não se vá querer conhecer tudo da vida do ser idolatrado,

Foi o que aconteceu comigo em relação ao cronista Rubem Braga. Meus conhecimentos sobre esse clássico da crônica brasileira do século passado se reduziam a alguns textos mais badalados que se tornaram leitura obrigatória para qualquer admirador da arte da escrita. No caso, a obra prima, cuja leitura eu já desfrutara é O Conde e o Passarinho, uma verdadeira joia literária forjada num jornal. Essa crônica dá título a uma antologia surgida nos anos trinta, contendo vários textos com o mesmo nível de elaboração estética.

Tivesse eu me mantido naquele parque onde um passarinho sorrateiro surrupiou a medalha de um conde descuidado e tudo seria mais fácil. Mas eu sou um leitor voraz, minha curiosidade intelectual não me permite permanecer na zona de conforto do já conhecido, ainda que isso implique em riscos de danos irreparáveis. Eis que um dia entrei numa livraria e me deparei com uma nova edição, em três volumes, das crônicas do Rubem Braga. Não tive a menor duvida, saí com os livros, já no antegozo da leitura.

Trata-se de uma compilação de textos reunidos por tema, e num deles encontram-se as crônicas de conteúdo político. Sendo eu um leitor muito interessado nos assuntos da política brasileira, os atuais e os do passado, escolhi exatamente essa parte como entrada naquele universo desconhecido. E comecei a sentir uma grande decepção. Não exatamente pela qualidade estética dos escritos. O esmero na escolha da palavra, a erudição, e o incomparável senso de humor estão lá em todas as páginas do livro. O problema é de conteúdo. Rubem Braga se mostra um antigetulista ferrenho, cativo de um ódio apaixonado, não só por Vargas, mas por todas as propostas políticas do trabalhismo. Basta que uma ideia seja apresentada por um dos aliados de Vargas e lá vem o velho Braga a atacá-la com todo tipo de argumento, sem o menor pudor de recorrer às falácias do senso comum ou motivações subjetivas. O mais visado dos discípulos de Vargas é, sem dúvida, o Jango, a quem chama de canalha, demagogo, e outros adjetivos que caem tão bem a muitos políticos brasileiros. O problema é que essas invectivas existiam antes mesmo de Jango ser presidente, apenas pela atuação no governo de Getúlio Vargas. Ou por ser trabalhista.

Para um cronista com tanta virulência nas críticas aos abusos do pai dos pobres, seria de esperar que o regime militar, instalado com o golpe de 64, fosse uma fonte inesgotável de inspiração para impropérios e achaques. Ledo engano. Para começar, o nobre cronista se refere à quartelada golpista como revolução, legitimando a versão oficial dada pelos oficiais protagonistas do golpe, e adere ao discurso de que o movimento foi uma ação necessária para livrar o Brasil da influência do getulismo; e não perde a oportunidade de tecer elogios, ainda que tímidos, à coragem e à ousadia dos líderes da revolução, que assumiram a tarefa de reconduzir o Brasil no rumo perdido da história.

É bem verdade que há vários casos de denúncias veementes das prisões arbitrárias e das torturas, que já eram do conhecimento de quem quisesse saber. Mas até nisso o autor se equivoca. Os desmandos são atribuídos a alguns oficiais irresponsáveis que, por descuido ou por pirraça, excederam suas funções. Em momento algum o autoritarismo aparece como um elemento estrutural do regime. E o mais curioso é que o cronista se define em vários momentos como um homem de esquerda, que na juventude até fez parte de um partido de tendência socialista.

Não é do meu conhecimento que o autor estivesse a serviço direto de algum interesse ideológico, como é muito comum em profissionais da imprensa de hoje. A sensação que dá é de um homem que viveu ao alcance dos principais episódios do século, sem entender nada da natureza dos fatos. Os políticos de oposição a Getúlio são sempre íntegros, suas atividades sempre orientadas por um sentimento de dever, preocupados apenas com os interesses administrativos. Motivação ideológica, associada pelo autor a demagogia, canalhice, oportunismo, era só para políticos de esquerda, como se na esfera do poder algum agente pudesse se eximir de ideologias. A balela de um governo puramente técnico e administrativo já existe há bastante tempo no Brasil.

Esse perfil do autor, que para mim é novo, não desqualifica as demais produções, sobretudo as que não falam de política, e O Conde e o Passarinho terá sempre lugar reservado em qualquer biblioteca que se preze. Mas não se pode cometer aquele erro muito comum nas avaliações de cunho personalista de assimilar como verdade inquestionável tudo o que é dito por um autor que admiramos em função de outro trabalho. Resta apenas uma curiosidade para efeitos de divagação. Considerando-se que a inteligência intelectual é em grande parte incentivada pela capacidade sensorial de captar as vibrações do mundo que nos rodeia, como é que um homem com tanta sensibilidade para perceber nuances da condição humana, não conseguiu entender o que estava acontecendo na política brasileira. As detenções e humilhações sofridas nos anos 30 nas mãos dos agentes da repressão do Estado Novo poderiam fornecer uma pista, e as desconfianças contra Getúlio Vargas seriam até legítimas. Mas daí a não perceber que o getulismo não se reduziu a uma execrável ditadura leva-nos a supor que as imprecações do autor têm muito mais de trauma do que consciência política.

Não é necessário grande exercício intelectual para perceber que esse tipo de postura, de jornalistas cumprindo função difamatória, ainda permanece muito vivo na imprensa de hoje, onde as conquistas dos governos de esquerda foram diluídas nas denúncias de corrupção, ainda que muitas     delas sem provas convincentes.

Se é verdade que uma história trágica se repete como farsa, as peripécias históricas que marcaram o período que vai da ascensão de Getúlio Vargas ao golpe de 64 estão se repetindo hoje com uma fidelidade digna de uma imagem de espelho, mas os supostos críticos da imprensa tradicional, desempenhando o papel de farsantes, continuam sem entender nada, e isso pode nos conduzir a mais uma lamentável e irreversível tragédia.

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