A musa melancólica

A urgência do homem primitivo em superar suas limitações levou ao surgimento da arte e da ciência. É possível entender a fricção de dois pauzinhos, ou lascas de pedra, que gerou o fogo, como um evento científico. E as pinturas nas cavernas, ainda que revestidas de motivos ritualísticos, adquiriram importância na história da Estética. O medo de viver abandonado num universo desconhecido criou a religião. Veio daí a ideia de uma dimensão superior no além, a qual seria alcançada através da aceitação de algumas regras de comportamento aqui na vida terrena. Arte e religião tornaram-se, então, dois caminhos possíveis para se chegar a tais plenitudes, ressaltando-se que não é raro que elas se confundam, pois que para muitos adeptos, a arte adquire status de rito religioso, em que uma musa, em constante estado de graça, conduz o seu protegido às regiões mitológicas, ao encontro dos soberanos olímpicos.
Tudo ia às mil maravilhas, e qualquer mancebo que se dispusesse a versificar suas mágoas amorosas já se sentia nas alturas, pronto para alçar-se aos píncaros da glória. Porém, lá pelas tantas, o poeta Victor Hugo veio alertar para o surgimento de outra musa, conspurcada pela moral cristã, que sofria da principal característica do cristianismo: a melancolia. Tratava-se de uma fadinha sacana, cansada daquela estopada retórica, e queria algo mais funambulesco. Logo que assumiu suas funções, essa madrinha da inspiração se encarregou de turvar a vista dos poetas, apresentá-los às coisas menos dignas de admiração, em vez da face imponente do herói, introduz uma caricatura de fisionomia deformada. Essa musa, sempre atenta às nuances e detalhes de cada objeto, não se cansa de perturbar a paz espiritual dos seus pobres devotos, provocando uma inversão nas expectativas ao alertar que a vida, ainda que momentos nobres, também comporta um lado meio risível. É ela que atrai os sátiros que espalham a desordem no reino da poesia.
O problema é que o ser humano é fraco demais e não consegue suportar qualquer vacilação nas suas certezas. Na utopia engendrada para suportar uma longa trajetória, tudo passa por uma elaboração bem organizada e coerente, onde tudo combina, numa sublimidade digna das obras supremas. Eis porquê é natural encontrar-se alguns indivíduos que, tomados por crises de devaneios, acreditam que passam pela vida a pensar e fazer apenas coisas de extraordinária importância; são amigos das pessoas mais maravilhosas do mundo; só se dedicam a atividades que deixam transparecer sua grandeza espiritual e a pureza de sua alma. A maioria das criaturas deste planeta ainda está agarrada às musas antigas, aquelas dos tempos clássicos, que só enxergavam o mundo reduzido dos círculos divinos. Por isso a sobrevivência de crenças primitivas como deuses e outros personagens celestes, sempre prontos a acudirem os pobres mortais em momentos de sofrimento ou prolongada dificuldade. Muito digno de zombaria é a constatação de que os viventes do século 21 ainda se deixam levar pela crendice de que, ao entrar num prédio de estilo arquitetônico rebuscado, se ajoelhar e repetir gestos e palavras decoradas vão merecer as graças de uma existência mais elevada, mais perto das divindades que eles mesmos criaram, e que só se manifestam na imaginação prodigiosa dos crentes.
Outra cilada em que as pessoas fazem questão de cair, na crença simplória de estarem mais seguras, é o amor romântico. Na ânsia de gozar logo os estágios mais inebriantes da alma, a burguesia cristã do século XII transformou o instinto de acasalamento, a simples satisfação de um desejo físico, em algo transcendente, uma união coroada com os louros dos mais nobres sentimentos, regida e abençoada por espíritos iluminados protetores do bem.
Nesses casos, a elaboração fantasiosa é tão eficaz que não deixa uma mínima brecha para a entrada da musa melancólica de Victor Hugo. Nada do gênio galhofeiro de Demócrito; nada do demônio da crítica; fora qualquer tentativa de teste do ridículo do conde de Shaftsbury. Para essas pessoas, tudo precisa estar no seu devido lugar, numa harmonia perfeita, criada no céu e tutelada pelos anjos. Só assim eles acreditam estar numa fase avançada do sublime, atingida apenas por alguns privilegiados.
A necessidade de se sentir acolhido em algum espaço mítico é uma das bizarrices mais esdrúxulas dos filhos de Adão e Eva. Como viver no tédio da perfeição, sem essa índole trocista que desarmoniza tudo a todo instante? Como abrir mão da diversidade, dos detalhes que o disforme nos oferece? E a surpresa do inusitado que a visão humorística nos apresenta, como enfrentar a realidade sem ela? Há por acaso coisa mais deliciosa do que um despropósito dito em momento inopinado? Pois uma tolice serve para evidenciar contrastes e denunciar as incongruências da razão nefelibata, e o ridículo das pretensões de uma vida orientada somente por conceitos abstratos. É sinal de uma mente expansiva conseguir aceitar e usufruir o prazer do imprevisto, do inesperado e fazer a aproximação entre fatos distintos e distantes para ver o mundo sobre outro ponto de vista, e sentir prazer com isso.
Em vez de uma entidade efêmera que habita nas alturas inatingíveis e nos mostra sempre a mesma visão clara e transparente banhada pela luz do sol, melhor seguir os vira-latas dos cínicos gregos, revirar os lixos das praças públicas, vasculhar os recantos dos becos mais sórdidos, as paisagens noturnas das vias urbanas, onde os seres se confundem na indefinição das sombras. Pois é também nos grotescos da realidade que encontramos os mais sublimes sopros de vida.

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