A ficção da realidade

As autobiografias são sempre suspeitas. Quem escreve nutre, por princípio, uma paixão natural por inventar histórias. Por isso, quando o escritor se faz personagem de si próprio, é natural que deixe a fantasia correr em trechos onde a realidade não foi tão favorável; ou ainda, se omita em passagens nas quais a vida real foi além do desejado. Tudo muito compreensível. Mas, quando o leitor abe que vai se deparar com uma ficção que tem um dado biográfico apenas como ponto de partida, a leitura fica mais excitante. Ainda mais quando o autor é um ídolo popular em outra área.

Esse é o caso de O irmão alemão, de Chico Buarque. Pelo que foi publicado na imprensa por ocasião do lançamento do livro, trata-se de um fato real na família de Hollanda. O pai, na juventude, antes do casamento no Brasil, viveu na Alemanha, onde deixou um filho, com o qual nunca mais teve contato. Chico, já adulto, empreendeu uma busca pelo meio-irmão, mas só conseguiu encontra-lo em antigas gravações, pois o irmão, que também era cantor, já havia morrido, em 1981.

A história contada no romance é exatamente essa. Até o personagem principal, o narrador em primeira pessoa, tem o apelido de Ciccio, cujo nome é Francisco. E o pai, um intelectual famoso e respeitado não esconde a inspiração no historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Mas a narrativa é estruturada de tal maneira que se torna irrelevante saber se os fatos descritos aconteceram ou não.

Na ficção, Ciccio tem um irmão brasileiro, tão distante quanto o outro perdido na Alemanha, e que é o preferido do pai, por quem Ciccio se sente tratado como pouco mais do que um aluno relapso. A tentativa de emular o irmão brasileiro, inclusive na caça das namoradas dele, é mais um elemento na busca desesperada na conquista de atenção do pai. A investigação tão atrapalhada para encontrar o paradeiro do meio-irmão entra num clima de fantasia, onde o procurado é visto nos lugares mais improváveis.  Além disso, durante a narrativa, Ciccio vai construindo uma identidade e uma história para esse irmão desconhecido, transformando-o num verdadeiro filho pródigo, que ele recuperaria e colocaria como prêmio nos braços do pai. Por mais de uma vez o personagem divaga sobre o sentimento de gratidão que o pai lhe dedicaria, caso ele conseguisse trazer de volta o filho perdido.

É nesse aspecto que a narrativa atinge o ponto mais alto. O irmão alemão adquire um status ficcional, com quem o narrador vive toda a afetividade que não consegue fluir com o irmão verdadeiro, nem com o próprio pai. Seu único contato com os homens da família é através da mãe, que assume um papel de protetora e mediadora dentro da própria casa. O Ciccio narrador se forma em letras para imitar o pai, veste as roupas do irmão brasileiro e flerta com as namoradas dele, e pode-se dizer que cria um outro irmão para quem se sente importante. É através do irmão quase fictício, ou da ficção literária, que o personagem vai recuperar a estima do pai.

Chico Buarque foi quase o único ídolo que tive na infância e adolescência. Aprendi a ouvir música ao som de Construção, Cálice e Geni e o zepelin. Por isso, leio a obra literária do meu antigo ídolo com certa reverência nostálgica. Mas, mesmo descontando-se essa predisposição à avaliação positiva da obra, não se pode negar o mérito de um texto fluente, que traz em várias passagens a marca do humor tão característico de algumas canções. É indiferente saber se o homem Francisco viveu os dramas de Ciccio ao descobrir que tinha mais um irmão perdido no mundo. A obra se mantem como uma leitura prazerosa mesmo para quem não conhece essa conexão com a realidade. Não vou dizer que seja um livro indispensável numa biblioteca, mas certamente é uma ótima opção para quem procura apenas uma boa leitura, sem se preocupar com os limites entre ficção e realidade.

1 Comentário

  • Avatar
    Postado 21 de janeiro de 2015 13:01

    Parabéns pelo texto!

Escrever Comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados *