A companheira constante

É inútil tentar fugir. Para quem se aventura pelas vias públicas, ela pode espreitar na esquina, no cano do revólver de um marginal. Ao atravessar a rua, é possível que ela se precipite na pessoa de um motorista estressado; ou avance sobre a calçada no rastro de um automóvel sem controle. Para quem fica em casa, ela ainda irrompe através de ondas eletromagnéticas, pela televisão, pelo rádio. Ela, a violência, tornou-se uma entidade, e vigia cada minuto da vida de um brasileiro. Tanto é que a gente fala “A Violência”, como um ser abstrato com existência própria, esquecendo-se que ela é apenas um estado de coisas, consequência da ação de alguém.
Hoje em dia, é natural que os temores e revoltas da população urbana estejam focados na truculência dos assaltos e na brutalidade dos bandidos, eleitos os principais agentes da violência. Não há como negar a validade desse enfoque. Ele sofre, contudo, de uma limitação muito suspeita, pois se tornou o único ponto de vista de um discurso moralista da mídia e de políticos, com vistas, talvez, a esconder uma realidade mais escandalosa, mas bem menos aceitável: a evidência de que a sociedade brasileira, na sua essência, é extremamente violenta.
Defino violência como uma ação intencional, de caráter coercitivo, exercida por alguém sobre outro ser humano, em que haja uma força contra a qual o violentado não pode lutar. É uma estratégia de resolver um conflito, no caso em que o agente opressor não reconhece no oprimido uma subjetividade legítima para competir com ele. Todo ato violento pressupõe a desumanização do elemento passivo, visto como um objeto, um obstáculo aos propósitos do sujeito ativo, que deve ser eliminado a qualquer custo.
Sob esse ponto de vista, não há diferença entre a investida do marginal e a atitude de um governo que confisca as contas bancárias de uma população inteira, sob a alegação genérica de financiar o bem comum. A fúria impositiva se manifesta, ainda, nas inúmeras taxas que o cidadão é coagido a pagar, sem nenhuma chance de escapatória. Nesse último exemplo, a imposição se torna imune a pressões externas porque é precedida por uma lei que a torna implacável. Em todos esses casos, o objetivo do agente é o mesmo: faturar o máximo que puder. E os espoliados se igualam todos na mesma obrigação de entregar, sem reagir, tudo o que lhes for agadanhado. O miserável de rua recorre ao assalto por ser uma alternativa ao seu alcance de atender aos apelos consumistas de uma sociedade que só valoriza o indivíduo enquanto consumidor em potencial. O Estado brasileiro, na sua atual condição de mero coletor de Impostos, pratica uma arrecadação excessiva para sustentar os instrumentos de manutenção do poder, cada vez mais sofisticados e dispendiosos. É evidente que a miséria de um não justifica nem ameniza a ganância do outro. O que se faz necessário é entender o recurso da violência como elemento estrutural de uma sociedade cujos membros não praticam o hábito de ouvir as razões de seu adversário.
Analisando o assunto por outro ângulo, há que se fazer uma distinção entre a violência, enquanto ato concreto de um agressor sobre uma vítima, e o espetáculo da violência patrocinado pela mídia. No caso de notícias veiculadas pela televisão, de atos de decadência da civilidade em espaços coletivos, o conhecimento do telespectador é direcionado, pois a percepção é distorcida pela seleção de informações que satisfazem aos interesses do órgão transmissor. Assim, o enunciado que chega ao receptor não é a narração do ocorrido, mas a interpretação de determinado veículo. A experiência que o indivíduo adquire sobre o evento é controlada pelo acréscimo ou omissão de dados importantes acerca de determinados aspectos da notícia. A mídia precisa do sensacional para sobreviver e se vale da extrapolação dos fatos para prender a atenção do público. Pessoas cujas expectativas existenciais se limitam a uma sobrevivência cotidiana dedicam-se muito pouco a exercer sua capacidade crítica. Seu imaginário se contenta com os pequenos dramas românticos das telenovelas e fofocas sobre intimidades dos participantes de reality shows. Essas pessoas, não por acaso a maioria da audiência televisiva, deixa-se facilmente influenciar pelo espetáculo feito pela mídia, na apresentação distorcida do caos urbano das grandes cidades. Dessa maneira, a experiência indireta recebida através da mídia se torna muito mais forte do que a referência concreta do real. O resultado é uma sensação de desamparo e pânico que se espalhou pelas metrópoles brasileiras. Na verdade, a mídia promove esse estado de insegurança, tendo como base uma constatação muito simples: a pessoa insegura é mais facilmente manipulada.
O marginal solto na rua atente, sem querer, a dois propósitos que não são seus: distrai a atenção do público, e ainda serve de álibi para que o Estado pratique, impune, suas próprias arbitrariedades.

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