A classe do ódio

O brasileiro é um sujeito que ama o verbo odiar. Apesar de todos os clichês com pretensões antropológicas do país da alegria, do êxtase carnavalesco, do reino do improviso, do hedonismo praieiro, mesmo com todos essas abstrações para afirmar o contrário, o povo brasileiro sofre de uma necessidade congênita de detestar alguém, ou alguma coisa.

Quais as causas disso? Ressentimento? Alguma experiência atávica de maus tratos? Não sei. Mas posso afirmar que a malevolência exacerbada sempre busca um alvo no qual se projetar e realizar uma catarse paliativa. Uma curiosidade encontrada no dicionário Houaiss aponta para uma linha interessante de análise: o ódio é geralmente provocado por uma sensação de medo. Qual o monstro que polui as paisagens verde-amarelas com as manchas negras do pavor?

Percebe-se, também, que algumas circunstâncias ou pessoas, por vezes, canalizam esse mal estar da falta de civilização tupiniquim de maneira mais intensa do que o normal. Quais as variáveis que desencadeiam esse paroxismo das hostilidades? Isso só psiquiatras e os psicólogos poderiam responder. A sugestão que trago neste texto é a de que, no momento atual aqui no Brasil, o alvo preferido da perversidade brasileira é o Lula.

Certo! Alguém vai argumentar que as denúncias envolvendo o ex-presidente em esquemas de corrupção seriam suficientes para desejar seu fim político e até sua execução sumária se no Brasil houvesse a pena capital. A isso eu responderia que sim, as acusações são graves e, se acompanhadas de provas irrefutáveis, devem conduzi-lo também ao fundo de uma cadeia para pagar, junto com os outros, pelos crimes que tenha cometido.

Mas, uma avaliação que leve em conta o desenvolvimento histórico desse fenômeno vai constatar que essa raiva do Lula, que hoje atinge níveis patológicos, já existia antes mesmo de ele ser presidente. Além do mais, forçoso é anotar que essa repulsão expressa em consequência das supostas falcatruas não tem a mesma intensidade quando se volta para outros políticos, cujas delações são até mais graves.

Um aspecto interessante de investigar é que essa rejeição é detectada em todos os meios sociais com a mesma virulência. Só como exercício de reflexão eu arriscaria algumas hipóteses. E começo por afirmar que em cada degrau da escada social brasileira, essa cólera contra o Lula é gerada por um vírus diferente.

Comecemos pelas tradicionais oligarquias, que é mais fácil. Um grupo de pessoas que se acostumou a mandar, sem nenhuma contestação, por muitos anos, não imaginava que um dia fosse enfrentar o revés de compartilhar o poder. Quando as urnas anunciaram a vitória de um intruso, fugitivo da indigência do Sertão nordestino, os déspotas embrutecidos não se incomodaram muito, pois acreditavam que aquele ex-operário, que nem sabia falar o português correto, que nunca tinha exercido nenhum cargo importante, iria tropeçar nos próprios pés e cair antes do final do primeiro ano de governo. Mas o ex-analfabeto foi para o segundo mandato, e ainda elegeu uma sucessora, tornou-se um líder nacional e uma referência internacional de governo progressista voltado para questões sociais. A elite enlouqueceu e como não tolera que um forasteiro qualquer, estranho ao seu seleto grupo de comparsas, tente chegar ao comando da nação, está disposta a qualquer coisa para evitar novas ousadias. Nada mais compreensível. O medo, aqui, é o de perder o comando que sempre exerceu da situação.

Depois temos as invectivas que explodem na goela daquela gente que vive espremida entre o andar de cima e o de baixo, numa oscilação histérica entre o desejo de subir e a ansiedade pelo perigo de cair. Aqui começam os problemas, pois esse segmento social que chamamos de classe média é uma abstração sociológica, uma vez que abrange um número muito grande de extratos e não tem uma identidade bem definida. Por outro lado, não é todo cidadão mediano que sofre irritações da bílis. Existe apenas uma parcela desse povo intermediário cuja capacidade de entender o processo de formação da sociedade é totalmente suplantada por um ressentimento incontido, disfarçado de indignação política. É aquela parte que presta serviços mais diretos para o patronato e, por causa dessa proximidade, e também por juntar as migalhas que os endinheirados deixam cair, acredita ser contemplada com as benesses que caracterizam a riqueza. Como se sabe, qualquer criatura acostumada à submissão, e sem identidade forte, gosta de se sentir uma espécie de extensão do ser a quem obedece, assim como um bebê se considera o prolongamento da mãe que o alimenta. É exatamente por não saber o lugar que ocupa na escala social que esse contingente subalterno adotou o discurso dos ricos e se bate com unhas e dentes a defender valores que não possui, mas acredita possuir. Em consequência, não aceita, de maneira nenhuma, ser governada por um presidente estranho às esferas superiores.

Resta ainda meditar sobre o rancor daquelas pessoas que habitam nas camadas financeiramente mais baixas da sociedade, e que popularmente chamamos de pobre. Esse é um pouco ainda mais complicado, por isso concentro o foco sobre um dos aspectos: o fato deles odiarem um homem que construiu toda uma trajetória pessoal a trabalhar para que eles, os pobres, melhorem de vida. Parece um paradoxo que tais pessoas espanquem com tanto ardor alguém que tenta ajudá-las e, ainda por cima, lancem contra a vítima tantos insultos baseados em incriminações carentes de provas, que mais parecem fofoca do que uma etapa de uma ação criminal. Arrisco mais um palpite. O problema é a naturalização da miséria. Muitas pessoas que levam a vida nos limites da sobrevivência acostumaram a acreditar que a vida é assim mesmo, quem nasceu na penúria vai morrer na pindaíba, deus quis assim etc e tal. Aí aparece um homem que saiu de um ambiente tão miserável quanto aquele em que o sujeito está vivendo e diz a ele, olha, o pauperismo em que você vive não é natural, ele foi construído ao longo dos séculos, juntamente com uma série de mentiras sobre a santificação da vida simples, e você deve tomar uma atitude para se livrar dessa condição sub-humana, lutar por seus direitos. Aliás, você sabia que tem vários direitos que lhes são negados? Não? Pois é. Os mesmos homens que te mantêm nessa mendicância te enchem a cabeça de caraminholas, e te negam benefícios garantidos por lei. Vamos lá, levanta a cabeça, vamos lutar!

Pronto, foi o que bastou para aquele pobre coitado se ver enredado em muitos conflitos de ordem moral. Desobedecer ao meu chefe? Eu tenho de lutar? Mas a gente não ganha tudo de graça? E eis que sua resposta é o punho cerrado, a mão cheia de pedras para escorraçar aquele que evidenciou que a pobreza não é uma condição natural, que a gente pode sair dela se quiser. É só se unir a outros indivíduos da mesma situação e juntos formar uma barreira de resistência contra a exploração e os desmandos dos tiranos. Aí o pânico se instalou de vez. Muito pior do que as torturas da inópia são os limites impostos pela falta de coragem.

Com essas interpretações, conclui-se que, dos três segmentos citados, apenas o primeiro, a classe dominante, nutre uma aversão a um alvo externo, a um alienígena que ameaça seus interesses diretos. Nos outros dois casos, o ódio é consequência de uma visão deturpada do mundo em que vivem e desconhecimento das variáveis que condicionam uma existência humana. Em resumo, um ódio a si próprio.

2 Comentários

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    Carlos Zeitoune Postado 5 de junho de 2017 15:36

    Análise enxuta e agudíssima, direta aos pontos a que se propõe desnudar! Parabéns efusivos!!

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    Clovis Pacheco F. Postado 5 de junho de 2017 16:11

    Excelente!

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