A CEGUEIRA DE CADA UM

Um filme não é um livro, isso todo mundo vê. As diversidades nas formas de expressão tornam-se inevitáveis pelas diferenças de suporte, mas não precisam – e não devem – alterar substancialmente o conteúdo, quando o primeiro se apropria do segundo para recontar a mesma história. As variantes interpretativas, quando acontecem, são determinadas por fatores externos à obra, tais como posições ideológicas, ou necessidade de tornar o entendimento mais acessível, com vista a atingir um público maior.

Um bom exemplo disso são as duas versões de “Ensaio Sobre a cegueira”, o texto escrito por José Saramago, e a leitura feita por Fernando Meireles, com o foco numa interpretação da cegueira, que parece ser o ponto mais importante da obra.

Sem perder de vista outras interpretações possíveis, há que se definir um significado para a cegueira, tal como ela é apresentada nas duas obras. Mas antes, convém especular sobre a importância da visão, e sua relação com o ato de olhar.

No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa encontra-se como uma das várias conotações do verbo OLHAR: dirigir os olhos a alguém; exercer o sentido da visão; fitar os olhos em; prestar atenção. Fazer uso dos seus olhos; dirigir os olhos a.

A palavra tem origem no latim adoculare. Ad = direção para algum lugar ou objeto. Oculo = dar vistas a.

Todas essas acepções dão a idéia de que olhar é um gesto intencional, uma atividade do sujeito sobre alguém ou algo. A visão é o resultado dessa ação, e sua intensidade depende, em grande parte, da competência horática do agente. Para o ser humano, a visão é o sentido privilegiado no momento do indivíduo interagir com a realidade concreta, porque é no desenvolvimento dessa prática de interação que o mundo exterior é medido, avaliado, e conhecido. Sem essa avaliação não existe o conhecimento necessário para as operações abstratas do espírito, que produzem os valores simbólicos para a instituição da Cultura. Nesse contexto, a cegueira é um retrocesso ao mundo primitivo dos instintos.

Parece possível vislumbrar essa interpretação na obra de Saramago. Os habitantes de uma determinada cidade perdem repentinamente a visão, em conseqüência de uma inexplicável epidemia de cegueira, e, numa tentativa de controle da situação por parte das autoridades, são postos em quarentena num manicômio, onde vão protagonizar o espetáculo da degradação humana. Ali, tratados pelos vigias como animais encurralados, acabam-se as distinções geradas pela civilização: classe, posição social, formação, capacidade intelectual, tudo desaparece. Passam a ser apenas cegos.

A partir desse momento inicia-se a queda em direção ao estágio animalesco. As práticas de convivências sociais, as racionalizações, as disposições de entendimento e harmonia são paulatinamente abolidas, e a satisfação das necessidades orgânicas básicas, como a aquisição de comida e um lugar confortável para dormir, se tornam as únicas preocupações capazes de mover os catacegos de um ponto a outro. E, com isso, a luta pelo poder, a usurpação da autoridade, a imposição do mais forte. E o mais forte é o cego que tem uma arma de fogo, aliás, produto da sociedade civilizada, da evolução da ciência e da tecnologia.

Quebrados também os tabus sociais, o sexo é outra necessidade orgânica satisfeita a qualquer momento, sem nenhuma noção de privacidade, e sem distinção de parceiro. Animada apenas pela compleição dos instintos básicos, a turba de cegos em que se tornaram aquelas pessoas, mergulha cada vez mais fundo nas trevas da selvageria. E mesmo que voltem a enxergar um dia, tudo o que foi construído antes está destruído. Talvez se possa entrever aí a necessidade de uma nova maneira de ver o mundo, e concluir que a construção da civilização mediada pela visão anterior está irremediavelmente perdida.

Até aqui o foco de atenção é a forma escrita. O passo seguinte é lançar um olhar sobre a tradução em imagens visuais, para divisar paralelos. Em primeiro lugar, é bom lembrar, apesar da obviedade, que um filme é produzido com milhões de dólares, e por isso precisa espelhar os anseios do grande público, e garantir o retorno do investimento. A adaptação cinematográfica da obra em questão certamente não fechou os olhos a essa regra básica do mercado. Por limitações de espaço e de competência analítica, esta síntese se restringe a observar comparativamente a maneira como a queda ao estado primitivo foi tratada nos dois casos. A primeira coisa a ser notada, é que o clima de selvageria existente na obra literária foi bem amenizado na releitura para o cinema, rebaixando a narrativa à categoria do filme-catástrofe, simulacro das tragédias coletivas, tão ao gosto das produções comerciais. Para confirmar essa hipótese, suficiente é acusar que uma das passagens mais significativas do livro foi deslocada na seqüência narrativa, e descontextualizada, perdendo todo o vigor. Trata-se de uma orgia. Quando os cegos malvados requisitam as mulheres para satisfazê-los nas suas necessidades libidinosas, espalha-se pelo manicômio um clima de extrema liberação dos instintos sexuais. A iminência de semelhante humilhação imposta pelos poderosos de outra ala desperta entre os quarentenários um estado incontrolável de alvoroço, em que todos se entregaram a todos, numa verdadeira apoteose do sexo. É nesse momento que a mulher do médico, a única pessoa a quem resta um pouco de orientação no meio do caos, encontra o marido na cama com a vizinha dos óculos escuros. Impotente diante da inutilidade de qualquer reação, ela se deixa ficar, a espiar o casal, num misto de piedade e repulsa.

No filme, essa cena aparece totalmente fora do contexto original. O médico e esposa, antes do colapso da visão dele, formam um par harmonioso, mostrado no ambiente doméstico como um autêntico casal de classe média, bem sucedido, profissional e afetivamente. No recinto de quarentena, com mais característica de prisão do que de hospital, as tensões começam a se insinuar. Até aqui, percebe-se fidelidade ao original. Porém, o espectador das grandes produções cinematográficas não dedica grande interesse a questões de Antropologia Social, e um conflito conjugal rende muito mais bilheteria do que a bestialidade do Homem na sociedade contemporânea. Em conseqüência desse condicionamento, o marido da película começa, então, a se impacientar com o tratamento recebido da mulher, acusando-o de inadequado, mesmo atolados no lamaçal em que se encontram. Suas solicitações noturnas pela esposa não são mais correspondidas e ele passa a se sentir rejeitado. É nesse momento que aparece a inevitável terceira interessada, na pessoa da moça dos óculos escuros, prostituta jovem, que mesmo nos cegos desperta intenso apetite sexual.

Visto por esse ângulo, o ponto mais baixo da queda, mostrado na obra literária através dessa cena, adquire no suporte fílmico o aspecto de um mero desentendimento entre os cônjuges. E a impossibilidade do olhar recíproco, causada pela cegueira de um, e a quase desorientação de outro, torna-se uma questão de simples compreensão e de perdão.

O universo caliginoso em que os personagens de Saramago foram atirados pela privação da inteligência visionária aparece na adaptação de Meireles restrito ao espaço hospitalar, através da imagem mostrada pela fotografia escurecida. No plano dos significados, porém, a incapacidade de enxergar é mostrada como um acidente, simplificando o tema, para ser aceito pelo público.

Por último, resta mencionar que a deficiência visual sofrida pelos personagens não é causada por carência de luz, e sim pelo excesso. Percebe-se aí a metáfora de uma civilização deslumbrada pela intensa luminosidade que invadiu a vida cotidiana. O Homem contemporâneo enxerga demais, vive ofuscado pela luz da ciência, da Tecnologia e da Informação. A tudo direciona sua lupa, ilumina todos os objetos do mundo real, misturando-os numa massa amorfa, sem identidade e sem cor. É a escuridão branca a que se refere um dos personagens do livro.

Sob esse ponto de vista, a dificuldade de enxergar é a tradução da impossibilidade de distinguir, ainda que por excesso de conhecimento. A mensagem, assim percebida, não deveria ser condicionada ao meio utilizado para transmiti-la. Seja a tinta escura impressa numa folha de papel, seja o foco de luz projetado numa tela de cinema. Só não vê quem não quer.

Enfim, cada um com sua cegueira.

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